Difícil não pessoalizar alguns temas. Nossas experiências nos guiam em nossas (próximas) ações, um processo retroalimentar, inclusive. Como se cada passo para frente fosse baseado nos dois últimos. E não poderia ser? O filme da Netflix O Mínimo para Viver (To the Bone, no original) foi uma dessas escolhas baseadas em experiências que poderiam disparar alguns gatilhos. Mas, assim como para que um tratamento seja iniciado é interessante que o paciente esteja ciente de seu processo de aceitação de um vício, reencontrar os temas de suas aflições é parte essencial para se vencê-lo.
O filme apresenta a história de Ellen, uma jovem com distúrbio alimentar em um ambiente familiar fragmentado, e que está no limiar de sua saúde física e psiquiátrica. É importante frisar que a obra não pretende incitar um comportamento ou ainda, apresentar uma metodologia terapêutica existente, mas consegue apontar a perspectiva do paciente que se pretende entender seu processo do vício. O ponto de partida da personagem é a terapia em grupo na rotina de uma das muitas clínicas em que ela esteve. Contudo, o plano de fundo está além da problemática do distúrbio alimentar, especificamente anorexia nervosa, mas como as ações de uma pessoa podem influenciar e, em alguns casos, direcionar a conduta de outros pacientes.
Neste sentido, o filme acerta ao projetar uma história de fundo, onde Ellen possui um tumblr com seus desenhos. Claro que, para a jovem, sua arte irá representar suas vivências. Mesmo sem mostrar os desenhos, incitam que as imagens eram fortes e que seus seguidores eram muitos. Um deles comete suicídio e deixa uma carta mencionando a obra de Ellen como ponto de partida para sua decisão. O conflito da personagem é, depois desta vivência traumática, criar uma motivação para viver, mesmo num cenário de culpa e autodepreciação.
Em vários momentos, outras personagens surgem para tentar entender o motivo de Ellen “escolher” pela anorexia. Como se houvesse uma resposta clara para o gatilho de um distúrbio alimentar. Várias sugestões são apresentadas. As mesmas que, certamente, outros jovens que possuem a patologia já puderam escutar pelo menos uma vez na vida: estética, problemática familiar, lesbofobia, introspecção/extroversão etc. Porém, nenhuma delas se aplica a Ellen. A personagem tem uma personalidade marcada pela ironia, muito pela breve vida que se apresenta no filme.
Seus pais se separaram quando ela tinha 13 anos. Sua mãe assumiu sua sexualidade e casou-se com Olive e, no início do filme, se mudaram de Los Angeles para uma fazenda no Phoenix. O pai é tão ausente que não é apresentado no filme, com uma atual esposa (Susan) que projeta-se em aparências e desculpas de uma vida que não se tem. Susan já tinha uma filha (Kelly) que se torna irmã de convivência de Ellen e grande parceira, a única neste núcleo familiar que apresenta traços de preocupação evidente, sem colocar o próprio ego na frente.
Após mais uma internação, a personagem central é levada a um novo tratamento. O seu prazo final está se esgotando. Keanu Reeves faz o terapeuta, Dr. Beckham, responsável pela última tentativa de Ellen, imposta por seu pai e sua madrasta. Ao chegar na casa/clínica, encontra um ambiente completamente diferente do que está acostumada. Um clima familiar entre outros seis internos que estão em diferentes fases de DA, uma, inclusive, com sonda.
Aqui se apresentam o conflito central da personagem: é importante continuar a viver? E se o é, para quem e para o que? O filme aponta todas essas transformações de forma juvenil, um retrato estilo sessão da tarde, sem pesos. Apresenta com leveza quase que pincelando as dificuldades das personagens e suas interações sem agredir o espectador com um tema tão delicado e que exige uma rede de apoio para que o paciente possa iniciar sua terapêutica que não depende do simples ato de comer, apenas, mas de compreender suas limitações e criar novas rotinas.
Em sua trajetória, Ellen interage, como um romance, com outro interno, mas não chega a ser uma paixão, afinal o foco é o seu distúrbio. Muda de nome para Eli. Entende sua relação com a doença da mãe (uma depressão que se inicia no pós-parto e que permanece ao longo de sua linha do tempo). Briga com o terapeuta. Nega a clínica. Renega a si. Uma das cenas mais marcantes foi sua decisão de continuar a viver, mesmo com todas as dificuldades familiares lhe jogando para a direção oposta. Em seu sono de despedida, percebe o corpo nu, cadavérico, sem cor, e a partir disso, leva consigo a certeza que não é ali que se pretende o fim.
Assim como a personagem a atriz também passou por um processo de distúrbio alimentar. Sua experiência fica evidente na atuação. É interessante como Lily Collins nos mostra verdade em seu conflito sobre viver ou não viver, difere, inclusive, das outras personagens, tornando-as irrelevantes para o drama de sua personalidade. Em obras com temas tão delicados, é de suma importância um trabalho de pesquisa e roteiro que priorizem as transformações internas e aponte um sinal, uma saída para o seu problema, sem arrastar o espectador em um poço. Desta vez, os produtores acertaram.