Conto do autor israelense Gadi Taub.
Traduzido por Mariana Ferreira de Toledo, como atividade prática em sala de aula, com o professor Moacir Amâncio (FFLCH – USP).
A primeira vez que Mariana percebeu que alguma coisa não estava bem com Daniel foi num sábado pela manhã. Nesse dia ele acordou cedo e se sentou na beirada da cama, olhando para fora. As cortinas do quarto não estavam totalmente fechadas, e lá fora parecia que ia chover. Fazia frio. Daniel passou a mão no cabelo. Durante alguns minutos ele ficou sentado imóvel. As pontas de seus pés encostavam no chão gelado. Havia silêncio na casa.
Uma hora depois, quando Mariana acordou, ela encontrou sobre a mesinha da sala pilhas organizadas de livros. No sofá havia uma mala aberta e ao seu lado roupas dobradas. Não havia nada dentro da mala. A porta para o jardim estava aberta e um vento fraco entrou na casa. Ela se aproximou para olhar lá fora e viu Daniel de pé na grama com o cachorro. Ele abraçava o animal, apertando-o contra o peito. As patas dianteiras e a cabeça do animal alcançavam seu ombro. Estava vestido com calças de veludo cotelê e um suéter. “O que aconteceu?”, ela perguntou. “Aconteceu alguma coisa?”
“Não”, Daniel respondeu. Ele afundou o queixo e virou a cabeça para trás para olhar por cima do cão. “O cachorro está com prisão de ventre”, disse.
“O quê?”, Mariana perguntou. Ela ainda não havia acordado completamente.
Daniel deu de ombros. Ela segurou as cortinas, observou-os por um momento e depois entrou. Enquanto ia para o banheiro, perguntou-lhe sobre as coisas que estavam na sala. Ergueu a voz para que ele pudesse escutá-la do jardim. “E o que são todas aquelas coisas em cima da mesa?”, perguntou.
Ele não respondeu, mas Mariana tampouco esperou pela resposta. Já estava a caminho do chuveiro.
Quando saiu, seu filho estava de pé ao lado da porta, de pijama. Ele se encostou no armário de casacos. Mariana vestiu um suéter de golfe. Seu cabelo estava preso por uma presilha e as pontas molhadas pingavam sobre seus ombros e sobre a nuca, dentro do colarinho.
“Você já acordou?”, ela perguntou. “Ainda não são nove horas.”
O menino ficou encostado e olhou para cima, para o teto. Ele mexia a cabeça e esfregava o cabelo na porta do armário. Quando ele falou, falou baixinho. “Papai me acordou”, disse. Depois acrescentou: “Ele disse que eu precisava me levantar.”
“Por quê?”, perguntou. “Ele disse para quê?”
O menino apertou os lábios. “Não”, respondeu.
“O que está acontecendo com você?”, ela perguntou.
O menino tombou sua cabeça para o lado até que a orelha se encontrasse com o ombro.
Mariana se agachou e o agarrou pelos ombros. “O que aconteceu?” Perguntou. Ela o sacudia.
Ele não respondeu e não olhou para ela. Olhava para o lado. “Papai está na cozinha”, disse. Havia silêncio na casa. O cabelo de Mariana pingava sobre a nuca e ela se deparou com o frescor do vento vindo do jardim.
Enquanto ia para a cozinha ela começou a balbuciar alguma coisa, mas quando viu Daniel, deteve-se.
Ele estava de pé ao lado da pia e, à sua frente, o cachorro. Suas patas traseiras estavam em uma pia e as da frente em outra. Quando viu Mariana, o cão tentou escapar, mas suas garras se deslizaram sobre a cerâmica e ele caiu. Quando se levantou, Daniel desferiu em seu nariz um golpe com a palma da mão aberta. O cachorro fez-se ouvir um grande ganido e caiu novamente com o peito sobre a divisória entre as pias. Fez uns movimentos com as patas, tentou se levantar, mas escorregou. Daniel o agarrou e o levantou. Ele ficou em silêncio. O sangue pingava de seu nariz até o fundo da pia.
Mariana se assustou. “O que você está fazendo com ele?”, gritou. “Por que está batendo nele?”
Ela se aproximou, mas Daniel a repeliu com a mão, as pontas de seus dedos tocaram o peito dela.
“Se você não pode ajudar, então não atrapalha”, disse. Ela tirou a mão dele e tentou dar outro passo à frente, mas foi impedida. “Eu te falei. Ele está com prisão de ventre”, disse. “Você não pode ajudar, certo? Então não atrapalha.”
“Do que você está falando?”, ela perguntou. Tentou chegar até a pia. Daniel ergueu uma das mãos como se fosse golpeá-la. Ela se afastou e ergueu o cotovelo sobre a cabeça, para proteger o rosto. Mas o tapa não veio.
“O que você quer dele?”, ela perguntou. Seu rosto se crispou. Começou a chorar. “O que está fazendo com ele?”
Daniel não respondeu. Abriu a torneira de água fria. Mariana olhou para o cachorro. Suas patas se agitavam e se molhavam. Ele tremia. “O que aconteceu?”, perguntou. Ela chorava tanto que era difícil entender o que dizia. “O que você está fazendo com ele?”, insistiu. “Solte-o. Deixe-o ir. Daniel, solte-o.”
Daniel olhou para ela. “Escute-me”, disse. Porém interrompeu a frase no meio. Ele parou para pensar por um momento e então continuou: “Escute-me, volte a dormir, está bem? Você não pode me ajudar, então talvez seja mais simples você ir para a cama e dormir.”
“O que aconteceu com você?”, ela perguntou. “O que você quer do cachorro?”. O menino saiu do canto e se aproximou dela. Ele segurou sua mão e encostou a cabeça em seu quadril.
Daniel fechou os olhos e se concentrou na água que enchia a pia. Houve um momento de silêncio. Depois ele abriu os olhos e virou-se. Disse devagar, mas em voz alta: “Há algo que você pensa que possa fazer?”. Com a mão aberta, ele apontou para o cão. “Olhe”, ele gritou, “você acha que pode ajudar?”
Mariana não respondeu. Daniel pôs as duas mãos na beirada da pia e inclinou-se para frente. Olhou para baixo e esperou mais um instante. Quando se garantiu de que ela já não responderia, ele se virou e fechou a torneira. Ouviu-se um silêncio. Era possível ouvir o silêncio além da porta para o jardim. A pia estava cheia até a metade. “Excelente”, ele disse, “excelente.” Começou a procurar alguma coisa nas gavetas.
“Daniel”, Mariana disse, “o que aconteceu?”
O menino ergueu a cabeça e olhou para sua mãe. Ele pensou que ela havia parado de chorar. Mas ela não parou. As lágrimas escorriam de seus cílios no suéter. “Daniel?”.
Daniel não encontrou o que procurava. Começou a revirar as gavetas e a tirar tudo de dentro delas. Utensílios de metal batiam ruidosamente sobre o mármore. Facas, abridores de lata e colheres. “Meu Deus!”, ele disse. “Que casa é esta?” Ele revirava o amontoado.
Depois parou no meio da cozinha e passou a mão nos cabelos. Ele pensou por um momento. O cachorro não se mexeu. Seu corpo ainda tremia.
Mariana tentou dizer alguma coisa, porém Daniel a calou num gesto com a mão. Ele se aproximou da pia e tirou a tampa do ralo. Depois esperou um pouco, mas antes que a água terminasse de escoar, ele ergueu o cachorro e o segurou debaixo do braço. Com o outro braço procurou nos bolsos dos casacos que estavam pendurados ao lado da porta até encontrar as chaves do carro. Já estava saindo, mas depois que abriu a porta deteve-se, como se tentasse se lembrar de alguma coisa que poderia haver esquecido.
“Daniel”, Mariana disse. Ela chorava. “Daniel, o que aconteceu com você?”
“Mariana,”, ele replicou, “fecha essa sua boca, está bem? Feche-a ou senão lhe quebrarei os ossos.” Ele enfiou as chaves no bolso e colocou o cão sobre a mesa de jantar. Entrava um vento pela porta aberta. A água pingava da pele do cachorro sobre a mesa. Daniel ficou parado na entrada da cozinha e mexia nas chaves do bolso através do tecido da calça.
Mariana falou baixinho. “Daniel,”, ela disse, “Daniel, o que você quer dele?”
Daniel se aproximou do lugar onde ela estava parada.
Ele articulou cada palavra pausadamente. “Cale a boca.”, gritou. “Ouviu?”
Seu rosto ficou bem perto do dela. Foi difícil para Mariana olhar para ele dessa distância, mas ela não se afastou. O hálito dele cheirava a creme dental. Ela tentou pegar em suas mãos, mas foi impedida.
“Ouviu?”, ele gritou.
Mariana chorava. Ele a segurou pelos pulsos e a apertou contra a parede. “Ouviu?”
Ela balançou a cabeça. Sua boca estava aberta e um fio de saliva lhe escorria dos lábios. “Ótimo”, Daniel disse.
Ele a soltou e se aproximou da mesa. Em seguida, pegou o cachorro e saiu de casa batendo a porta.
Mariana se sentou.
O menino ficou ao seu lado. Seus joelhos tremiam. Eles ouviram a porta do carro se fechar e o som do motor. Depois, ouviram o barulho que se afastava.