Quero com este artigo desenvolver uma reflexão a respeito da questão da negritude na poesia moçambicana. A proposta é iniciar essa análise pensando no começo de tudo, ou seja, desde quando surgiu no mundo o conceito “negritude” e como essa concepção evoluiu em Moçambique, mantendo ou não suas características iniciais.
Inicialmente, o africano pretendia identificar-se como homem negro, valorizando essa sua condição. Dessa forma, não havia uma identificação nacional, mas continental. Esse pensador era um africano, e não um moçambicano, angolano etc. A concepção da nacionalidade africana ainda estava muito imatura.
No século 19 encontramos alguns poetas que demonstram sua preocupação com o ser negro. No entanto, sua visão ainda estava bastante presa aos moldes da literatura ocidental, em que a beleza suprema é a da mulher branca. A negra, quando aparece em algum texto, leva toda uma conotação sexual. Como exemplo disso, temos dois poetas moçambicanos: Cordeiro da Mata e Costa Alegre.
Cordeiro da Mata escreveu um poema intitulado “Uma Quissama” (1872). Ali, ele exalta a beleza de uma quissama, apesar de manter a idéia da beleza tradicional branca, como se dissesse: “ela é bonita, apesar de negra”:
Em manhã fria, nevada,
N’essas manhãs de cacimbo
Em que uma alma penada
Não se lembra de ir ao limbo;
Eu vi formosa, correcta,
Não sendo européia dama
A mais sedutora preta
Das regiões da Quissama.
(grifo meu)
Em outra estrofe do poema, Cordeiro da Mata escreve: “Nos lábios – posto que escuros – / viam-se-lhe risos puros.” Assim, vê-se que ele sempre analisa a beleza da negra comparando-a com uma branca. Também aqui, a mulher aparece como “sedutora”, e não como pura, preparada para um casamento casto.
Costa Alegre, em 1891, publicou o poema “Negra”, onde tenta alterar a forma tradicional de beleza, sem, contudo, conseguir afastar-se totalmente da branquidade padrão:
Negra! Negra! Como a noite
D’uma horrível tempestade,
Mas, linda, mimosa e bella,
Como a mais gentil beldade.
(grifo meu)
De qualquer forma, a negra ainda não é vista como uma mulher que mereça ser amada realmente, nem é aquela a quem o poeta se entrega submisso. Sua beleza ainda está ligada à sedução. Ela é bonita para o sexo e não para o casamento. Mas essa não deixou de ser uma tentativa de intervir no padrão da beleza branca ocidental. Esses autores foram sujeitos que, em sua época, tentaram reconhecer e construir sua própria identidade.
No começo do século XX, um advogado chamado Sylvester Williams organizou uma conferência pan-africana, que consistia em fazer com que os negros não nascidos na África reconhecessem o continente como sua pátria e se solidarizassem com os africanos colonizados. Assim, surgiu a ideia de “negro com muito orgulho” e outras frases parecidas que, ao invés de acabar com o problema da discriminação, incentivava a segregação racial. Alguns mais entusiasmados, como o jamaicano Marcus Garvey, defendiam a proposta do “regresso à África”, ou seja, todos os negros deveriam voltar ao seu continente de origem e criarem ali o seu império.
Houve muitos congressos para a discussão de temas como o anticolonialismo. Um dos principais representantes do pan-africanismo foi Du Bois. Ele protestava contra o imperialismo, defendia a independência, exaltava sua cor, defendia o direito à igualdade e respeito, sendo contra os privilégios para os brancos. Du Bois influenciou muitos autores africanos de sua época e posteriores.
Além dessas discussões, os negros chamaram atenção para sua causa através da música (jazz, blues etc.). Algumas revistas entraram em circulação, como a Legítime Défensee e La Revue Du Monde Noir. Todas essas formas de defesa à causa negra estavam sendo inseridas em um movimento chamado Nègritude. Simone Caputo Gomes, em texto publicado em sua página na internet, define o movimento da seguinte forma:
A Nègritude propriamente dita nasceu, portanto, de um protesto intelectual de negros de formação cultural européia que tomavam consciência da diferença e da inferiorização que os europeus impunham aos descendentes da África. (p. 04)
Alguns negros eram contra o movimento da negritude, acreditando que ela também era uma forma de preconceito. Outros a consideravam problemática porque não era possível falar de uma cultura negra, já que dentro da África (continente tão grande) havia várias culturas. Pensar em uma cultura seria ocultar as nacionalidades que lutavam por sua independência não só política, mas também cultural.
Dessa forma, a Negritude foi tomando características específicas para cada grupo. Quero dizer, ela apresentava uma essência comum, mas cada grupo acrescentava características em conformidade ao seu modo de pensar. De acordo com Caputo, no mesmo texto citado anteriormente, não é possível falar de Negritude como movimento organizado nas colônias portuguesas, “visto que coincidiu como recrudescimento da ditadura salazarista (a partir de 1949), culminando em 1965, com o fechamento da Sociedade Portuguesa de Escritores” (p. 07).
O conceito de Negritude mudou também a partir dos movimentos de independência das colônias. Começaram a estudar a história do negro pois, descobrindo sua ancestralidade, descobria-se também uma forma de conquistar seu espaço no mundo.
Em Moçambique, muitos autores fizeram tentativas de defender sua condição de negro, seguindo algumas características da negritude, mas sem levar muito em conta a questão da nacionalidade. Os autores de personalidade nacionalista começaram a aparecer por volta de 1945. Eles apresentavam algumas características do movimento da Negritude, queriam a igualdade, denunciavam o racismo, a exploração colonial etc.
Pioneiros nesse tipo de poesia foram José Craveirinha e Noémia de Sousa. A poetisa nunca publicou seus poemas em uma obra, eles foram dispersos em publicações antológicas. Foi somente seis meses antes de morrer que alguém decidiu reunir seus poemas em um livro.
Noémia assume sua identidade como africana, relacionando a África com a maternidade (inclusive porque sua mãe era negra). Também é em seus poemas que encontramos o pensamento da consciencialização (e não conscientização) que, além da tomada de consciência, há a atitude de abandonar a situação de alienado, alienação essa que permitia que os colonizados assumissem de forma passiva a cultura e as imposições dos colonizadores.
Suas composições também são inovadoras porque ela é um dos primeiros autores a valorizarem a estética do homem negro, sem considerá-lo sob uma visão erótica ou sexual. Sua poesia era de protesto contra a colonização. Para isso, ela usava a imagem da mulher oprimida e violentada, como se pode ver no poema “Sangue Negro”, de 1949:
Ó minha África misteriosa e natural,
Minha virgem violentada,
Minha Mãe!
(…)
Como se teus filhos – régias estátuas sem par – ,
Altivos, em bronze talhados,
Endurecidos no lume infernal
Do teu sol causticante, tropical,
Como se teus filhos intemeratos, sobretudo lutando,
À terra amarrados,
Como escravos, trabalhando,
Amando, cantando –
Meus irmãos não fossem!
No início do poema ela relaciona a África à sua mãe, e a compara a uma virgem violentada, provavelmente pela colonização. Mais adiante no poema, Noémia se mostra inconformada com o fato de seus irmãos africanos reagirem tão passivamente (como régias estátuas) diante do colonizador. Eles estão alienados, tanto que nem parecem ser irmãos da poetisa, que já assumiu a atitude de consciencialização.
José Craveirinha é outro autor inovador porque assume sua africanidade a partir de seu compromisso com a moçambicanidade. Ele adota algumas características do movimento da Negritude, opta pela expressão oral etc. Na verdade, não só ele, mas Noémia de Sousa, Rui Knopfli, Rui Nogar e outros decidiram não eliminar heranças lusitanas como, por exemplo, a língua portuguesa. Ao contrário, assumiram-na, acrescentando expressões, marcas de oralidade, sotaques, típicos de Moçambique. Craveirinha, portanto, se afirma como moçambicano sem desconsiderar a cultura “alheia” penetrada na “própria”. Ele não considera que isso ameace seu conceito de africanidade, mas apenas o reestrutura.
No poema “Hino à minha terra” (1974), ele exalta enfaticamente sua situação de moçambicano. Utiliza o bom português, mas não abre mão da expressão oral moçambicana nem de termos que são nomes de sua terra, como ele diz:
(…) E grito Inhamússua, Mutamba, Massangulo!!!
E torno a gritar Inhamússua, Mutamba, Massangulo!!!
E outros nomes da minha terra
Afluem doces e altivos na memória filial
E na exacta pronúncia desnudo-lhes a beleza.
(…)
Oh, as belas terras do meu áfrico País
E os belos rios e os belos lagos e os belos peixes
E as belas aves dos céus do meu País
E todos os nomes que eu amo belos na língua ronga
Macua, suaíli, changana,
Xístsua e bitonga
Dos negros Camunguine, Zavala, Meponda, Chissibuca
Zongoene, Ribáuè e Mossuril. (…)
Quanto ao movimento da negritude, o poeta considera relevante. Ele disse em entrevista a Rita chaves e Omar Thomaz, em 1998:
Essa mestiçagem sempre que era identificada com o universo negro era marginalizada. A opressão dava para todos. Mas às vezes fico baralhado. E não aceito a defesa da Negritude como uma atitude racista. Eu só considero como racismo se uma pessoa afirma:”Eu tenho orgulho em ser negro.” Isso pode ser visto como uma forma de se achar mais. Eu acho que uma pessoa deve exaltar sua cor para ser igual, não para ser superior. É preciso compreender que eu posso ser negro e belo, que eu não preciso copiar o branco para ser aceito. Essa é ainda uma grande confusão que uma pessoa encontra aqui em África. (2005, p. 239)
A maneira como ele se relacionava com a Negritude foi no sentido de encarar o racismo como sendo uma das faces da exploração. O negro deveria lutar para conquistar seu espaço em seu espaço (África) e não depender do outro. Isso envolvia a valorização e disseminação da cultura negra para que o africano, além da liberdade, recuperasse sua auto-estima. Rita Chaves (2005) diz que, para Craveirinha “a isso articulava-se o sentido de classe, deixando clara a ligação com as camadas populares”. (p. 149)
Além desses e de outros poetas, surgiram nessa época em Moçambique diversos tipos de publicações, como suplementos de jornais, revistas etc., que assumiam posturas claramente influenciadas pelo pan-africanismo e pela Negritude. Devido ao pouco espaço de que disponho neste trabalho, não analisarei outros poetas que também reconheceram sua identidade moçambicana, a exemplo de Noémia e Craveirinha.
Assim, é possível observar o amadurecimento dos poetas moçambicanos quanto à sua visão como africano, e a relação dessa visão com o movimento da Negritude. Trata-se de poetas inconformados com sua situação de colonizado, que utilizavam a cultura própria parra vencer a batalha contra aqueles que os detinham em poder imperialista.
Referências Bibliográficas
CHAVES, Rita. Angola e Moçambique: Experiência Colonial e territórios Literários. Cotia: Ateliê Editorial, 2005.
FERREIRA, Manuel. 50 poetas africanos. Lisboa: Plátano Editora, 1989.
GOMES, Simone Caputo. Caminhos da Negritude na Poesia Moçambicana. Disponível em: http://webcache.googleusercontent.com/search?q=cache:MR25kjo9hNwJ:www.simonecaputogomes.com/textos/negritude.doc+simone+caputo+gomes+negritude&cd=1&hl=pt-BR&ct=clnk&gl=br . Acesso em 23/06/2010.