Meu objetivo é analisar a obra Luuanda, de José Luandino Vieira, observando os traços de oralidade presentes nos contos. Esses traços serão observados levando em conta especialmente dois aspectos: a posição e o estilo do narrador em relação à tradição oral angolana da contação de histórias, e a estrutura do texto, tais como as construções frasais, sintáticas e do léxico. Antes, porém de fazer essa análise, será necessário falar rapidamente sobre a obra em questão, seu autor e o contexto em que ele a escreveu. José Luandino Vieira nasceu em Portugal, mas mudou-se ainda bebê para Angola. O autor considera-se angolano, ele mesmo disse: “se me perguntarem: ‘és angolano?’, eu tenho uma base cultural para responder a isso, e não apenas um passaporte.” Dessa forma, Luandino, assim como os demais angolanos, não aceita a condição de colonizador e passa a lutar pela libertação de seu país. Luandino é preso, e na cadeia, ele escreve Luuanda, publicado em 1964.
O livro é composto por três contos: o primeiro, Vavó Xíxi e seu neto Zeca Santos, conta a história de um rapaz desempregado que, juntamente com sua avó, chega a uma condição de miséria tal que não havia o que comer em casa, a não ser raízes de plantas que a vavó pegara do lixo. O segundo conto, Estória do ladrão e do papagaio (ELP), fala de como se deu a prisão de um ladrão de patos, começando a história a partir de sua prisão; fala também de como se deu a prisão de Garrido, ladrão do papagaio Jacó, porém dessa vez contando toda a história que motivou o homem a cometer esse crime. O último conto, Estória da galinha e do ovo (EGO), fala da briga entre duas vizinhas pela posse de um ovo, botado no quintal de uma delas, porém pela galinha que era propriedade da outra.
A relação oralidade/escrita no texto de Luandino é um aspecto muito importante da obra, e essencial para compreender as intenções do autor. Maria Aparecida Santilli (1980) comenta que, no texto, o quimbundo (dialeto angolano) está oposto ao português, no sentido da preferência de uso entre os falantes. Porém, estas duas línguas se socializam, sendo utilizadas juntas. Os falantes utilizam o português, mas se valem do quimbundo para construções sintáticas e léxicas, mostrando que ainda possuem viva sua personalidade africana e sua cultura que, apesar da imposição cultural do colonizador, insiste em se fazer presente, mesmo que incorporada à outra. Santilli também diz que é uma ironia perceber que não há traços do português no quimbundo e sim o contrário, como se a primeira fosse uma língua superior, a que deve ser usada em situações formais; já o quimbundo representaria a fala coloquial, aquilo que deve ser preservado apenas por ser parte da tradição popular local.
Luuanda foi escrita também logo após Luandino ler Sagarana, de João Guimarães Rosa. Segundo ele, Guimarães Rosa o ensinou que “era necessário aproveitar literariamente o instrumento falado dos personagens”, e que “um escritor tem a liberdade de criar uma linguagem que não seja a que os seus personagens utilizam.” Isso quer dizer que as personagens, para serem vistas como seres reais, precisam falar como os seres reais falam; e o escritor, para utilizar a linguagem informal, precisa conhecer a formal. Como se diz no meio linguístico, o autor deve ser poliglota em sua própria língua.
A oralidade em Luuanda pode ser percebida especialmente em dois aspectos: o da contação de histórias, decorrente da tradição oral, e o linguístico, que tem a ver com o léxico, a sintaxe, a “mistura” do quimbundo com o português etc.
O narrador surge nos três contos como contador de histórias. Mesmo no primeiro conto, em que os traços da história contada de acordo com a tradição oral estão menos visíveis (há quebras de sequências temporais, há menos marcas de oralidade no narrador etc.), é possível perceber algumas características de um contador de histórias, como o uso do discurso indireto livre:
“Junto com os estalos da lenha a arder e o cantar da água na lata, os soluços de Zeca Santos enchiam a cubata (…) Mas também, Zeca não ganhava mais juízo, quando estava ganhar o vencimento no emprego, que lhe correram, só queria camisa, só queria calça de quinze embaixo, só queria peúga vermelha, mesmo que lhe avisava para guardar ainda um dinheiro, qual?!” (p.12)
Nos outros contos, a ideia de contador aparece mais clara. Começando pelas personagens, o fato de elas serem planas demonstra, não uma incapacidade do autor em criar personagens complexas, mas sim de uma intenção de Luandino em apresentar o coletivo, e não o indivíduo. Além disso, nas narrativas orais não aparece a complexidade dos seres sobre quem se conta a história, o que interessa são os casos e as situações ocorridas com eles.
Outro discurso do qual Luandino se vale para mostrar que a história escrita pode bem ser contada oralmente está na forma como o narrador a inicia, isto é, ao estilo do “era uma vez…”: “A estória da galinha e do ovo. Estes casos passaram no musseque Sambizanga, nesta nossa terra de Luanda (EGO, p. 99). “Um tal Lomelino dos Reis, Dosreis para os amigos e ex-Loló para as pequenas vivia com a mulher dele e dois filhos no musseque Sambizanga.” (ELP, p. 39).
A palavra estória foi criada por Guimarães Rosa, numa tentativa de diferenciar os casos que não ocorreram daqueles que ocorreram de fato (história). Assim, o autor procura deixar claro que aqueles fatos não ocorreram, enquanto o narrador tenta convencer o leitor de que tudo aquilo é verdade: “Minha estória. Se é bonita, se é feia, vocês é que sabem. Eu só juro não falei mentira e estes casos passaram nesta nossa terra de Luanda.”
Pode-se também notar a influência da tradição oral na obra a partir da aproximação dos contos com histórias fantásticas, apesar de eles narrarem situações verossímeis, passíveis de acontecer. Nesse caso, vê-se uma certa mistura do gênero literário preocupado em relatar a realidade e o gênero das histórias contadas, que necessitam de um toque fantástico. Em Angola, essas histórias sobrenaturais são chamadas de mi-sosso. O mi-sosso é parecido com a fábula: há animais falantes e pensantes, e uma “moral da história”, constituída geralmente da vitória do mais fraco sobre o mais forte. Os contos de Luuanda não são propriamente mi-sossos, mas possuem algumas características comuns a esse gênero.
O primeiro conto é mais literário, está relatando mais a realidade, isto é, o que realmente e literalmente (entenda-se que não se trata de uma história metafórica) está acontecendo com o povo de Luanda diante da colonização, e o colonizador (considerado mais forte) é quem sai vencedor. O segundo conto já possui alguns elementos mais difíceis de aceitar como fatos realmente ocorridos, como é o caso da relação do papagaio e Inácia. Se na fábula aparece um animal falante, o conto de Luandino apresenta um papagaio que, apesar de não falar racionalmente, e sim apenas repetindo os sons emitidos por sua dona, chega-se a desconfiar por alguns momentos se esse animal não tem consciência do que fala e faz: “Logo Jacó abriu a asa e pôs um barulho que parecia riso de pessoa, antes de falar.” (ELP, p. 66). Porém, as próprias personagens do conto, mesmo que às vezes por alguns motivos pensem na humanidade do papagaio, não aceitam o bicho como ser pensante: “Verdade é que os monas lhe xingavam de ouvir o papagaio, mas quem ensinou foi a Inácia, ela é quem inventou. Papagaio não pensa, só fala o que ouve, o que estão lhe dizer.” (ELP, p. 86).
O terceiro conto também possui um animal como elemento importante na história. Há um final feliz, como nos contos de fadas, e o problema é resolvido entre as partes envolvidas, porém apenas depois de uma tentativa inútil de se buscar a solução do lado externo ao problema: na luta entre nga Zefa e Bina pela posse do ovo botado pela galinha (propriedade de Zefa) no quintal de Bina, buscou-se ajuda de vavó Bebeca que, por sua vez, pediu ajuda de várias pessoas da cidade, que tentaram solucionar o problema de forma a se beneficiarem de alguma forma com a situação. Por fim, numa ameaça de perderem a galinha e o ovo, Zefa, Bina e os moradores do musseque uniram suas forças contra aqueles que queriam tomar o que lhes pertenciam. Mesmo aparentemente mais fraco, foi o povo quem saiu vencedor. Uma maneira de se interpretar esse conto é pensar nesse povo do musseque como representante do povo angolano, e os interessados em se beneficiarem da galinha e do ovo como os “invasores”. Pensando dessa forma, o conto seria uma grande metáfora e se aproximaria do mi-sosso neste sentido. Não há animais se comportando como humanos, e sim o contrário. A grande salvação da galinha e a vitória do povo do musseque só ocorrem quando os dois filhos de Bina imitam a “fala”, isto é, o som da galinha, e esta foge das mãos dos que a tomavam, indo até onde o barulho que ouve está sendo emitido. Assim, vê-se o contrário do que ocorre na fábula, mas isso não significa que o conto seja o contrário do gênero, mas ele em seu inverso, ou seja, é uma fábula contada sob o ponto de vista dos animais. Entenda-se: se para os humanos é sobrenatural um animal reproduzir a fala humana (o que ocorre na fábula), para os animais, seria sobrenatural um humano imitar sua linguagem e se fazer compreender pelo animal, como ocorreu no conto em questão. Do ponto de vista dos animais, portanto, o conto seria uma fábula porque há o fantástico, que é o fato de os meninos conseguirem se comunicar com a galinha, na linguagem dela. Os meninos entendiam o que a galinha falava:
– Sente, Beto! – sussurrou-se Xico. – Sente só a cantiga dela!
E desataram a rir, ouvindo o canto da galinha, eles sabiam bem as palavras, velho Petelu tinha-lhes ensinado.
(…)
O miúdo esquivou para não lhe puxarem as orelhas ou porem chapada, mas Xico defendeu-lhe:
– Não é, vavó! É a galinha, está falar conversa dela!
(EGO, p. 107)
Este exemplo prova também certa humanidade da galinha, pois ela diz em sua língua, ideias racionais, próprias de seres humanos. Quando os meninos traduzem a linguagem da galinha à vavó, eles o azem em quimbundo, e não em português:
– A galinha fala assim, vavó:
Ngêxile kua ngana Zefa
Ngala ngó ku kakela
Ka… ka… ka… kakela, kakela…
(EGO, p. 108)
Nas fábulas, são os seres inferiores (animais) que precisam se adaptar ao sistema linguístico e intelectual dos superiores (humanos). Na EGO, a vitória do povo vem justamente na adaptação dos superiores ao sistema linguístico dos inferiores. Assim, pode-se pensar que uma possível vitória dos colonizados sobre os colonizadores seria a adaptação do português ao quimbundo e não o contrário, como ocorre na realidade. É por isso que se diz que na Angola, a história remete àquilo que poderia ter sido a História e não àquilo que ela realmente é.
Pensando nesse desejo do autor em que a cultura colonizadora se adaptasse à colonizada, e sabendo que ocorre o contrário, é possível perceber uma ironia nos contos, já que o texto é escrito em português, mas incorpora algumas construções quimbundas e léxicas dessa língua. Esse é um dos traços encontrados em outra maneira de se perceber a oralidade na obra: a análise da estrutura linguística decorrente do discurso informal.
No que diz respeito às construções sintáticas do quimbundo no discurso em português, é possível encontrar vários exemplos nos contos:
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“licença já não pede” p.7
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“Fome é muita, vavó!” p.8
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“Você lembra esse gajo, não é?” p. 46
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“você queria mesmo a galinha ia te pôr um ovo?” p. 104
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“Juro não fiz de propósito” p. 106
Essas expressões não são ouvidas no português falado, em sua estrutura normal. Provavelmente o que ocorre é o uso da língua portuguesa dentro de uma estrutura sintática quimbunda. Em (1) vê-se a troca de posição da palavra licença. A expressão equivalente em português seria: “já não pede licença.” Em (2), (3), (4) e (5) vemos a omissão de artigos, preposições e conjunções, respectivamente. Em português diria-se: “a fome é muita”, “você só lembra desse gajo”, “juro que não fiz de propósito.”
O quimbundo também é usado com o português no discurso no que diz respeito ao léxico. Vemos frequentemente palavras como: musseque, cubata, nga, sukuama, cap’verde, makutu, muximar, etc. Isso sem dizer de ocasiões em que a personagem fala português e quimbundo no mesmo instante de fala:
“– Sente, menina! Mu muhatu mu! Mbia! mu tunda uazele, mu tunda uaxikelela, mu tunda uakusuka…” p. 19
(A mulher é como a panela: dela sai o que é branco, o que é preto, o que é vermelho…)
Além da presença do quimbundo dentro do português, é posível também observar outras estruturas características da língua falada. Abaixo segue um quadro com as ocorrências mais fortes do discurso informal em Luuanda:
Caso |
Exemplo |
Variação pronominal tu/você na mesma oração |
“Então, você, menino, não tens mas é vergonha?” p.8 “Você és bandido, não é?” p. 40 “Você pensa que eu não te conheço, Bina? Oensas?” p. 102 |
Repetição de palavras numa mesma oração ou período (também pode ser um recurso literário) |
“As pessoas que estão a morar lá dizem é o Sambizanga, a polícia que anda patrulhar lá, quer já é lixeira mesmo.” P. 39 |
Omissão da preposição a entre verbos de ligação e de ação (no Brasil, o fenômeno não ocorre, já que a forma verbal utilizada é o gerúndio) |
“É a galinha, está falar conversa dela” (está a falar = está falando). P. 107 “Se eu fico dormir…” (se eu fico a dormir = fico dormindo). P. 40 |
Objetos antepostos ao sujeito (trata-se de um fenômeno muito comum no discurso oral, inclusive no português brasileiro) |
“O ovo foi meu milho que lhe fez, pápulas!” p. 103 (Em lugar de “foi meu milho que lhe fez o ovo”.) |
Luuanda é riquíssima em presença de discurso oral (o próprio título tem Luanda escrito com dois UU, procurando reproduzir a maneira de o povo pronunciar o nome da cidade). Não é possível neste trabalho enumerar todas as ocorrências dessa oralidade na literatura e na obra analisada.
O que pode-se dizer de tudo isto é que José Luandino Vieira é profundo conhecedor da língua portuguesa dita formal (e literária) e, por isso, conhecendo também a oratura angolana, com suas tradições e maneira de falar do povo, foi capaz de unir brilhantemente a concepção europeia de literatura à tradição dos contos orais africanos. Também soube transformar em arte a linguagem falada pelos luandinos, consequência do encontro de culturas de colonizadores e colonizados.
Referências bibliográficas
LEITE, Ana Mafalda. Modelos críticos das representações da oralidade nos textos literários africanos e sua adequação no quadro das teorias pós-coloniais. (texto policopiado)
SANTILLI, Maria Aparecida. A “Luuanda” de Luandino Vieira. In: VÁRIOS. Luandino – José Luandino Vieira e sua obra. Lisboa: Edições 70, 1980.
VIEIRA, José Luandino. Luuanda. São Paulo: Ática, 1990.