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“Último tango em Paris” e o reforço da violência contra a mulher

Nos últimos dias temos acompanhado a revolta e discussão em torno de uma declaração dada pelo diretor de cinema Bertolucci sobre seu filme “Último tango em Paris” (1972) e a atriz Maria Schneider. Na entrevista datada de 2013, Bertolucci afirma que a cena de abuso sexual que consta no filme foi uma cena real. Segundo o diretor, essa cena não estava no roteiro, foi algo combinado entre ele e o ator Marlon Brando – ator principal do filme – no mesmo dia em que a cena seria gravada. Maria Schneider ficou sabendo apenas no momento da gravação.

Acredito que vale a pena contar um resumo rápido do filme para quem não viu. Trata-se da história de dois desconhecidos que se encontram por acaso, se sentem atraídos um pelo o outro e iniciam um relacionamento. Não um relacionamento amoroso e, sim, sexual. Eles entram em um acordo: serão anônimos um para o outro, não contarão nada de suas vidas, nem mesmo seus nomes. Ele é um homem de meia-idade, atormentado pela morte da esposa. Ela, uma jovem parisiense apenas começando a vida. Na vida real, Marlon Brando, que interpretou o personagem Paul, tinha 48 anos e Maria Schneider, que interpretou Jeanne, tinha 19. A história do filme se complica quando Paul não se contenta com a relação do jeito que está, pois quer iniciar uma “vida nova” com Jeanne. Entre tantas cenas de sexo e descontrole emocional, há uma cena muito pesada de violência sexual. Mas não se deixe enganar, não se trata de uma cena para problematizar a violência contra a mulher ou o machismo. Ao meu ver, é uma cena gratuita de violência e humilhação de uma mulher.

Lembro-me que tive essa impressão quando assisti esse filme, sem ainda saber da “polêmica” por trás dele. Apenas assisti sem nenhum conhecimento anterior sobre o mesmo, porque muitas pessoas me recomendaram. “Um clássico do cinema”, “uma obra prima”, etc. Quando terminei de ver o filme, pensei: “que filme horroroso”. Parece um pecado não gostarmos dos chamados “clássicos do cinema” (e quem é que faz essa lista de clássicos?), mas esse filme definitivamente me causou uma péssima impressão na época. Não era para menos, afinal, a cena tão chocante do filme – um estupro, vamos usar as palavras reais aqui – não foi uma interpretação, não foi de mentirinha e hoje o mundo fala sobre isso.

Nesse momento, uma coisa me intriga mais que qualquer outra: por que só agora – após tantos anos do lançamento do filme, depois de passados três anos dessa entrevista do Bertolucci, depois da atriz Maria Schneider ter denunciado em diversas oportunidades o abuso que sofreu por parte do diretor e do ator Marlon Brandon – por que somente agora esse assunto ganha tamanha proporção e revolta? A única resposta a que consigo chegar é: porque somente agora ouvimos a verdade saída da boca do homem abusador e isso revela mais uma vez o machismo estrutural da sociedade em que vivemos.

Vamos pensar, Maria Schneider não se calou diante do estupro que sofreu. Ela denunciou o fato em entrevistas. Nessa, especificamente (link em inglês), a atriz conta como se sentiu. Ela diz que com apenas 19 anos e iniciando sua carreira no cinema não sabia que poderia se negar a fazer uma cena que não estava no roteiro. Ela diz que sentiu estuprada por Bertolucci e Brandon e que suas lágrimas e desespero naquela cena eram reais. Maria morreu em 2011, após uma vida conturbada pela depressão e abuso de drogas. Ela nunca se recuperou desse filme, que, de repente, a transformou em um “sex symbol” e que praticamente custou sua carreira. Maria morreu sem ter sua denúncia de abuso levada a sério. Sua denúncia não causou revolta, não causou o frenesi que deveria ter causado naquela época. Foi preciso um homem – um de seus abusadores – contar o que aconteceu, para que todo mundo acreditasse de verdade.

Parece exagero o que está sendo dito aqui, mas não é. Basta olharmos para todos os casos de violação que temos conhecimento, seja por meio da grande mídia, seja na nossa vida cotidiana. A mulher, mesmo sendo vítima, acaba se tornando a culpada. “Alguma coisa ela fez, ele não ia fazer isso do nada”, “mas quem mandou sair sozinha?”, “olha essa roupa, olha esse jeito de falar”, “quem mandou ficar bêbada?”. Escutamos histórias como essa todos os dias. Agora, imaginemos que uma mulher denuncie um homem que ocupa um posto importante na sociedade. Um político conhecido, um chefe adorado na empresa, um diretor de cinema renomado…

A verdade é que Bertolucci foi tão covarde que deu essa declaração dois anos após a morte da atriz Maria Schneider. Na entrevista ele assume o que fez, dizendo que “Maria era muito jovem para interpretar a cena como a víamos” e que “queria a sua reação como menina, não como atriz, queria a sua reação ao ato de humilhação”. O diretor também disse naquela ocasião que não se sente arrependido pelo que fez. Agora, três anos após essa entrevista, quando esse trecho foi resgatado e tem causado tanta polêmica, Bertolucci mudou sua fala, para se defender. Ele disse que Maria sabia, sim, da cena, apenas não sabia de alguns detalhes sobre ela. Que conveniente mudar sua declaração nesse momento em que todos estão comentando sobre o assunto, não é mesmo?

Não sabemos o desfecho dessa história. Uma confissão de abuso deveria ser punida de acordo com a lei, mas tenho séria desconfiança de que isso não vai ocorrer com Bertolucci. Sei que não devemos nos contentar com pouco, mas ao menos toda essa polêmica atual tem servido para resgatar a memória da atriz Maria Schneider. Não para provar que ela tinha razão, porque não deveria nem haver dúvidas disso quando ela denunciou o ator e o diretor, mas para mostrar que ela foi silenciada, como muitas mulheres são nessas situações e que isso não pode continuar acontecendo.

Veja abaixo o trecho da entrevista do diretor Bertolucci, faland sobre Maria Schneider.

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