Oi, pessoas!
Finalmente venho falar de Um Defeito de Cor, o livro de agosto do meu desafio literário de 2018. Sim, continuo atrasada, mas, aos poucos, vou terminar. Anteriormente, contei sobre minha escolha por essa obra e autora e agora quero falar sobre este livro maravilhoso.
Breve resumo
Antes de tudo, acho importante apresentá-lo a quem nunca ouviu falar. A história se passa no século XIX e abrange vários momentos históricos importantes para nosso país. Tudo isso é contado do ponto de vista de uma mulher negra escravizada, a Kehinde. Mas não se trata apenas de uma perspectiva, Kehinde narra sua própria história de vida enquanto conta, pensa e questiona a realidade ao seu redor.
O livro começa com Kehinde sendo sequestrada na África (em Uidá) junto com sua irmã e avó para ser escravizada no Brasil. Conta sua chegada a Salvador, assim como vários anos vivendo nessa cidade e em outras e também seu retorno à África. Não à toa é um livro longo, há muito a ser contado. Kehinde narra os acontecimentos em retrospectiva, ou seja, na verdade, são memórias dessa mulher que tenta refazer seus trajetos, encontros e desencontros desde que foi forçada a sair de seu lugar de origem. Nessa história aparecem inúmeros personagens e as vivências e relações no cotidiano do Brasil escravagista.
Sobre o título do livro, deixo a explicação nas palavras da própria Ana Maria Gonçalves, tirada dessa entrevista AQUI:
No período colonial havia uma lei, entre as muitas outras leis segregacionistas, que impedia que negros e mulatos ocupassem cargos civis, militares e eclesiásticos, reservados aos brancos. Quando o talento, a competência ou a vontade eram muito grandes, o negro ou mulato podia pedir a “dispensa do defeito de cor”, que foi concedida, por exemplo, ao padre mulato José Maurício, um dos mais importantes musicistas e compositores coloniais brasileiros. Ele apenas pode se tornar Mestre da Capela Real e responsável pela música sacra que lá tocava depois de dispensado do defeito de que padecia.
Kehinde (ou Luísa Mahin)
A fascinante personagem Kehinde foi inspirada em Luiza Mahin. No livro, a autora grafou o nome com S, para diferenciar e reforçar que se trata de um exercício de imaginar como teria sido a vida dessa mulher, sobre a qual, na realidade, não se tem muita informação.
A verdadeira Luiza Mahin foi uma figura importante nos levantes negros que ocorreram na Bahia no século XIX, incluindo a Revolta dos Malês. Ela teria fugido para o Rio de Janeiro e depois deportada para Angola. Porém, parece não existir documentações que comprovem essas informações. Luiza Mahin também seria a mãe do poeta Luiz Gama, segundo seu próprio relato. Da mesma forma, não há documentação que comprove esse fato.
Mas, se pensarmos bem, que tipo de documentação poderia haver? Até hoje a população negra não consegue conhecer suas origens e ancestrais, porque simplesmente não havia esse tipo de registro. Novos nomes eram dados (o nome do senhor de terras), mães eram separadas de filhos… Enfim, prefiro acreditar nas palavras do poeta sobre sua própria origem.
Literatura e História
Obras literárias nunca são “só uma historinha” para nos entreter. Você pode pensar em qualquer livro neste planeta, em qualquer enredo, ali vai encontrar informações sobre nós, como sociedade. Isso é uma das coisas que mais me encanta na Literatura. É claro que gosto de pegar um livro e lê-lo simplesmente por ler, para me desligar do mundo, para me distrair um pouco. Mas ainda assim, mesmo que leiamos pelo puro prazer de ler, vamos encontrar detalhes sobre comportamentos, valores, ideias. É uma representação da sociedade.
Um Defeito de Cor vai muito além disso, porque é, de fato, um romance histórico. Ou seja, a autora se preocupou em escrever um livro que relatasse acontecimentos reais. Porém, com a dose de imaginação e criação literária e artística que cabe a uma escritora de ficção. Sobre essa categorização do livro, cito novamente a própria Ana Maria Gonçalves, na mesma entrevista mencionada anteriormente:
Se nos ativermos à definição clássica de romance histórico, com a recriação de uma determinada época e seus hábitos, costumes e acontecimentos, suas influências políticas, sociais e culturais, Um defeito de cor é um romance histórico. Mas não é fiel à história, principalmente se levarmos em conta que já estamos ficcionando quando saímos do meramente descritivo para recontar qualquer acontecimento, principalmente se não o presenciamos. Temos que nos apropriar dele e ordená-lo a partir de um lógica e de uma visão próprias baseadas em narrativas de terceiros. Há muitos personagens no livro, mais de trezentos, e boa parte deles realmente existiu e esteve inserida naquele contexto, e o que tentei fazer com eles foi questionar e simular uma verdade histórica. Aristóteles dizia que o poeta, e acredito que nos tempos atuais podemos também nos referir ao prosador, cria ou reproduz um passado possível, e não real.
Nesse sentido, ouso falar que Um Defeito de Cor é leitura obrigatória não apenas por ser uma ótima obra literária, mas por ser uma fonte de conhecimento histórico. Embora seja uma ficção, conta mais sobre a história dos negros no Brasil colonial e escravagista que todos os livros didáticos que já conheci.
Ana Maria Gonçalves fez uma extensa pesquisa para contar a história do ponto de vista dos negros e, principalmente, de uma mulher negra, que é a narradora e personagem principal. Não se trata, portanto, de mais um ponto de vista branco, da “história oficial”, que insiste em minimizar a violência da escravidão e ignorar a história de resistência dos negros escravizados. É um livro revolucionário!
Além dessa costura de ficção e História, me impressionei também com a maneira como a autora passa por épocas, datas e tantos personagens sem perder o fim da meada em nenhum momento. Não é um livro confuso, com personagens superficiais, com uma história que vai e vem e que em certo momento você se vê perdido, sem saber quem é quem ou em que momento da história está. Tudo é construído de maneira muito detalhada e atenciosa. Do começo ao fim fica aquela vontade de não parar de ler, para saber o que vem a seguir, o que acontece com nossa querida Kehinde.
Outro ponto importante que quero destacar, porque me chamou muita atenção, é a riqueza de detalhes com os quais Kehinde narra o cotidiano. Desde as comidas e as formas de prepará-las, até os rituais religiosos. Aliás, há muitos trechos sobre os rituais das religiões africanas, afinal, no pano de fundo está a história dos negros no Brasil no início do século XIX. Pessoas que tinham suas religiões, seus idiomas, sua cultura e, apesar da repressão colonialista a todos esses aspectos, tentavam manter suas raízes.
A riqueza de detalhes é a mesma para narrar as violências da escravidão. Desde a violência física nos navios do tráfico, nas fazendas ou nas cidades, até às psicológicas e a violência presente na tentativa de minimizar as consequências desse crime hediondo, que foi a escravidão. Nesses trechos, é uma leitura difícil e pesada. Dói fundo na alma.
Por fim, quero destacar minha admiração por Kehinde. Sua força, sua inteligência. Ela conseguiu comprar sua liberdade e construir coisas impensadas para uma mulher negra de sua época. Isso é incrível, mesmo que estejamos falando de um livro de ficção. Desde ainda criança ela já demonstrava seu lado crítico e questionador, cito um trecho maravilhoso como exemplo:
Alguns daqueles senhores disseram que a independência ia ser boa para o Brasil, terra de homens capacitados para decidir o próprio destino. Outros, principalmente os que lidavam com comércio, disseram que todos pagariam um preço alto demais pela independência, visto que eram os portugueses que intermediavam a maioria dos negócios feitos com a Europa, e que depois que o Brasil ficasse nas mãos dos brasileiros, o destino seria bastante incerto. (…) Achei o assunto interessante, mesmo não entendendo, pois era como se os argumentos que usavam contra a dominação portuguesa também valessem contra a dominação que eles tinham sobre nós, os escravos. A mesma liberdade que eles queriam para governar o próprio país, nós queríamos para as nossas vidas. A exploração era a mesma e até mais desumana, porque se tratava de vidas e não apenas de pagamento de impostos e da ocupação de cargos políticos. (p. 156-157)
GONÇALVES, Ana Maria. Um Defeito de Cor. Record, 2017.
Kehinde lutou para sobreviver no mundo cruel que foi o Brasil do século XIX. Sua luta, criatividade e genialidade, em certa medida, lhe deram “a dispensa do defeito de cor”, mas as marcas da escravidão a acompanham até o fim do livro. A história termina em aberto e eu gosto de imaginar um final feliz. Porque de triste já basta tudo o que ela teve que passar para chegar a esse final. De triste já basta nossa História real.
Kehinde me conquistou. Ana Maria Gonçalves me conquistou. É por isso que a experiência de ler apenas livros escritos por mulheres me emociona e me faz crescer. Encontro personagens femininas extraordinárias e isso é inspirador.
Espero muito que compartilhar essa leitura aqui no blog sirva para despertar o interesse de vocês por esse livro. Por favor, leiam. Todos precisam ler Um Defeito de Cor. É um livro longo, sim, mas como já disse algumas vezes por aqui, não incentivo a preguiça intelectual. Livro longo não é sinônimo de livro difícil e, especialmente nesse contexto em que vivemos, é preciso incentivarmos o interesse à leitura e aos estudos. Principalmente se tratando de um livro como esse, com essa temática. Acredito que qualquer pessoa que saiba ler pode pegar essa obra e aprender bastante com ela. Então, por favor, façam isso em algum momento da vida de vocês e compartilhem com outras pessoas essa leitura.
Obrigada pela paciência de ler esse texto até o final!
A edição que li de Um Defeito de Cor foi essa AQUI.
Para ver a lista completa do meu desafio literário de 2018 (com todos os links do já publiquei), clique AQUI.
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