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A paixão segundo G.H.

É difícil perder-se. É tão difícil que provavelmente arrumarei depressa um modo de me achar, mesmo que achar-me seja de novo a mentira de que vivo. (p.10)

Esse trecho aparece em uma das primeiras páginas do livro. De maneira um tanto quanto intensa G.H. começa a nos contar que está perdida e meio confusa sobre quem ela é, sobre o que já não faz sentido, se é que algum dia fez. Ela simplesmente vai soltando muitos pensamentos sobre a experiência recente que teve. Nós, leitores, ainda não sabemos qual é essa experiência, então o início da leitura é bastante confuso para nós também. É como se estivéssemos dentro da cabeça de G.H., em meio a todos aqueles pensamentos, sem saber do que se trata. Até que, de repente, ela se volta para nós e diz: “me dá sua mão, vou te contar tudo”. G.H. diz que precisa imaginar que está segurando a mão de alguém, para seguir em frente e entender o que aconteceu,  para talvez se encontrar. Num primeiro momento, essa mão que ela segura é a mão do leitor, mas ao longo do livro isso muda, fica meio indefinido, na verdade. Às vezes parece que ela está segurando a mão de um (ex) companheiro e até mesmo de sua mãe e logo volta a ser a mão do leitor. É um pouco confuso, mas imagine que você está dentro da mente de G.H. e ela está falando, na verdade, consigo mesma. Você fala sozinho? Quando falamos sozinhos, direcionamos nosso discurso a um monte de gente e a ninguém, ao mesmo tempo. Essa é G.H segurando essas mãos invisíveis.

Mas quem é G.H.?  A história se passa dentro de um quarto e o que conhecemos de G.H é o que ela nos conta dessa experiência nesse cômodo da casa. Mas algumas informações oferecidas no livro podem nos dar uma ideia do perfil dessa personagem. Ela mora em um apartamento de cobertura, isso já é um sinal de que é uma mulher rica. Ela nos diz que é escultora, não uma grande artista, talvez uma “meia boca”, mas aparentemente é reconhecida. Ela tem maletas com suas iniciais gravadas, G.H,, o que é mais um indício da sua boa situação financeira. Provavelmente viaja bastante e quem tem maletas com iniciais gravadas? Não chegamos a conhecer seu nome. Talvez porque ele não era realmente importante, não importava tanto a pessoa em si, mas sim todo esse processo de se perder, descrito pela narradora.

Resumidamente, o que acontece é: G.H demite a empregada que trabalhava em sua casa. Ao fazer isso, resolve que vai organizar o quarto onde esse empregada vivia, um quartinho nos fundos do apartamento. G.H. imagina que irá encontrar o quarto bastante bagunçado, cheio de poeira e com objetos inúteis acumulados. Ela nos diz que gosta muito de organizar coisas e que é muito boa nessa tarefa, então vai ao cômodo com a intenção de colocar em prática uma de suas melhores habilidades. Mas, para sua surpresa, ao entrar ali encontra um lugar completamente limpo, sem bagunça nenhuma, um lugar arejado, que com a luz do sol entrando pela janela ficava insuportavelmente claro. Não era nada daquilo que G.H. esperava e isso a deixa bastante desconcertada. Além disso, em uma das paredes do quarto ela encontra um desenho feito com carvão, que acredita ter sido feito pela empregada. O desenho era um contorno de um homem, uma mulher e um cachorro. Encontrar esse mural também a deixou incomodada, entendeu aquele desenho como um julgamento da empregada, de quem ela não conseguia sequer lembrar o rosto. Enfim, G.H. se perdeu em todo esse contexto. Encontrar o quarto completamente diferente do que ela esperava foi uma quebra na normalidade da sua casa, da sua rotina, da sua mente. Ela estava chocada, não sabia o que fazer. Para piorar, quando abre a porta do guarda-roupa se depara com uma barata.

Acredito que não seja agradável para ninguém se deparar com uma barata, mas G.H. deixa muito claro o quanto ela odeia esse pequeno animal. Então esse encontro causa nela um terror e um nojo gigantesco. Encontrar a barata aumentou aquele sentimento de confusão que ela teve ao entrar no quarto. Ela começa a pensar naquele animal e o descreve com detalhes (é uma passagem meio tensa do livro, se você também odeia baratas). Nesse momento G.H. começa a se identificar um pouco com a barata. Vendo outras interperetações do livro após minha leitura, encontrei alguns comentários que diziam que o encontro de G.H. com esse animal representava o encontro com o Outro, o encontro com o diferente, com quem ela teria que lidar. Mas quando li esse livro pensei muito mais em um encontro consigo mesma, um encontro com um lado seu totalmente detestável, asquereso, primitivo. Em diversos momentos, G.H. se compara com a barata, não se distanciando, mas se aproximando, encontrando coisas em comum, por mais que essas características não fossem desejáveis. É justamente isso que aumenta o seu nojo, seu terror, sua confusão mental. Imagine que essa mulher rica, bem sucedida, com mania de organização, de repente, se veja em uma barata. É chocante.

Nesse ponto eu me lembrei um pouquinho do livro A Metamorfose, do Kafka. Embora sejam livros bem diferentes e apesar de que não sabemos em qual inseto asqueroso se transforma o personagem de Kafka (não fica claro que é uma barata), a identificação com um animal repugnante me parece aproximar um pouco essas duas histórias. Mas enquanto Gregor Samsa se transforma de fato nesse animal, G.H. observa a barata de fora, tentando sem sucesso um afastamento dela. Bem, chega um momento em que nossa personagem mata a barata, ou pelo menos ela acredita que mata. Com a porta do guarda-roupa ela esmaga o animal, que fica com o corpo partido no meio, soltando uma massa branca de dentro de si. A barata ainda mexe as antenas e as patas, mostrando para G.H. que sair dessa situação não vai ser tão simples quanto parece.

E na minha grande dilatação, eu estava no deserto. Como te explicar? eu estava no deserto como nunca estive. Era um deserto que me chamava como um cântico monótono e remoto chama. Eu estava sendo seduzida. E ia para essa loucura promissora. Mas meu medo não era o de quem estivesse indo para a loucura, e sim para uma verdade – meu medo era o de ter uma verdade que eu viesse a não querer, uma verdade infamante que me fizesse rastejar e ser do nível da barata. Meus primeiros contatos com as verdades sempre me difamaram. (p.59)

A analogia com o deserto é aprofundada por G.H. e a sensação causada é de estarmos cada vez mais perdidos junto com a persongem. Muitos comentários que encontrei após minha leitura diziam que esse, como a maioria dos escritos de Clarice Lispector, não era um livro racional, para entender, e sim para sentir. E é verdade. Se você tenta achar alguma lógica enquanto lê esse livro talvez realmente dificulte a experiência de leitura, mas se você se entrega aos sentimentos compartilhados pela personagem, então você realmente percebe sobre o que é o livro. Você passa a se identificar, afinal de contas, quem de nós nunca se sentiu perdido?

Enfim, chega o ápice da história. Em meio a tudo isso, G.H. começa a se dar conta que para sair dessa confusão ela precisa comer a barata. Sim, isso mesmo que vocês leram. Não, isso não é um spoiler, qualquer resumo que você encontre do livro por aí vai te contar que, de fato, G.H. come essa barata morta por ela, com toda sua massa branca nojenta. Mais uma passagem tensa do livro, se você odeia baratas. Para que comer a barata? Acredito que esse momento é como uma libertação para G.H. Ela incorpora – literalmente – esse seu lado primitivo e asqueroso. Finalmente ela se encontra, ou pelo menos consegue sair desse estado de confusão. Lembram da frase no início desse texto, sobre ela se achar, “mesmo que achar-me seja de novo a mentira de que vivo”? Não consigo identificar se no final G.H. realmente se encontra com seu lado primitivo, dessa neutralidade viva, como ela diz, e se transforma, ou se ela simplesmente vira a página, ou seja, consegue sair daquela confusão e não quer voltar a pensar nisso. Você que já leu o livro, o que acha? Eu acho que fico com a primeira opção.

Nas minhas pesquisas posteriores, encontrei um vídeo muito interessante sobre esse livro, que você pode assistir aqui. Nesse vídeo, a Carmem fala algo interessante sobre o nome do livro, que eu não havia parado para pensar. Ela chama a atenção para a referência bíblica que existe no título “A paixão segundo G.H.”. “A paixão de Cristo”, “o evangelho segundo…”. Se pensarmos por esse lado, a paixão que seria a trajetória de dor e humilhação, a morte e a ressureição é vivida por G.H. naquele momento do quarto, em sua perda e encontro de si. Na ressurreição ela retorna como ela mesma, mas, ao mesmo tempo, diferente, renovada. Essa ideia só confirma meu achismo de que comer a barata foi o momento em que ela, finalmente, se encontrou.

No início do livro Clarice Lispector diz que gostaria que A paixão segundo G.H. fosse lido apenas por “pessoas de alma já formada”, “aquelas que sabem que a aproximação, do que quer que seja, se faz gradualmente e penosamente – atravessando inclusive o oposto daquilo que se vai aproximar”. Fiquei pensando o que a autora quis dizer com “pessoa de alma já formada”. Será que ela espera que essa pessoa se dê conta de que, na verdade, nunca está completamente formada? Que sempre pode perder-se e encontrar-se e nesse processo conhecer a si mesma? É difícil saber, mas eu gosto de pensar que seja isso.

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A edição que eu li foi essa AQUI, da Editora Rocco, de 2009.

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