Kambili é uma adolescente que vive com seus pais e seu irmão, Jaja. Seu pai é um homem muito rico, dono de uma fábrica de alimentos e de um jornal. É um homem que comanda sua família com mãos de ferro. Kambili é a narradora da história e nos conta como seu pai domina tudo e todos com o apoio da religião. Mas não esperem uma visão crítica de Kambili sobre seu pai. Por muito tempo ela não pensou que as suas relações familiares poderiam ser diferentes e, apesar de alguns questionamentos para si mesma, ela via o pai com admiração e temor, ao mesmo tempo.
O contexto do livro é a Nigéria pós-colonização. Em diversas passagens do livro encontramos os efeitos de anos de dominação britânica. Não só os efeitos, como se fosse algo que houvesse acabado, mas também a presença constante da colonização, especialmente por meio da religião. Eugene, pai de Kambili, é uma personagem que representa isso muito bem. Tudo o que está fora da religião católica é errado, ou seja, tudo o que tem a ver com a cultura e ancestralidade de seu próprio país. Para Eugene, a religião católica levou à Nigéria a civilização. No decorrer da história ele reforça a todo momento que não aceita nenhum resquício de “paganismo” em sua casa, embora, como boa observadora, Kambili tenha percebido a contradição em seus atos e na própria religião. Vejam essa passagem, por exemplo:
“O palácio do Igwe ficava a alguns minutos de nossa casa. Uma vez, fazia vários anos, havíamos lhe feito uma visita. Mas depois nunca mais fomos lá, porque Papa disse que, embora o Igwe houvesse se convertido, ele ainda deixava que seus parentes pagãos fizessem sacrifícios em seu palácio. Naquela ocasião Mama cumprimentara o Igwe da forma tradicional, como as mulheres devem fazer, abaixando-se e oferecendo-lhe as costas para que ele desse tapinhas nela com seu leque feito da cauda macia e amarela de um animal. Quando chegamos em casa naquela noite, Papa dissera a Mama que o que ela tinha feito era pecado. Ninguém devia se prostrar diante de outro ser humano. Era uma tradição pagã, prostrar-se diante de um Igwe. Por isso, alguns dias depois, quando fomos ver o bispo em Awka, eu não me ajoelhei para beijar o anel dele. Queria deixar Papa orgulhoso. Mas Papa puxara minha orelha no carro, dizendo que eu não possuía o espírito do discernimento; o bispo era um homem de Deus; já o Igwe era apenas um governante tradicional.” (p. 102-103)
As dúvidas e contradições se tornaram mais evidentes para Kambili quando ela e seu irmão foram de férias passar alguns dias com sua tia Ifeoma e seus primos, Amaka e Obiora. Nesse momento Kambili percebeu que a educação tirânica de seu pai não era a única possível e talvez nem fosse a melhor. Ela teve contato com outro tipo de relação familiar, mais espontânea e aberta. Na casa de sua tia ela também conheceu o padre Amadi que, ao contrário do padre Benedict de sua paróquia, dá valor à cultura local, à sua própria cultura, porque ele é nigeriano. Kambili adentrou a um mundo novo e, como ela mesma diz em certa passagem do livro, sem volta. Ou seja, ela havia mudado, seu irmão Jaja também e as coisas já não poderiam ser da mesma forma.
Obviamente, não vou entrar em muitos detalhes da história porque espero que vocês leiam o livro. Após a leitura, podem voltar aqui para darem sua opinião nos comentários (onde o spoiler está permitido) e assim conversaremos melhor sobre a história em si.
Como primeiro livro do meu desafio de leitura de 2017, acho que comecei bem. Hibisco Roxo é um livro incrível, não apenas porque é muito bem escrito – adorei o estilo de narrativa da Chimamanda – mas também porque nos apresenta uma ótima história, bem envolvente e, ao mesmo tempo, uma boa dose de realidade. Não quero dizer com isso que Hibisco Roxo é uma representação generalizada da Nigéria. A própria Chimamanda rebate essa visão empobrecida do livro na palestra “O perigo de uma história única”. Também não quero dizer que devemos olhar esse livro como uma crítica social, do ponto de vista sociológico. É um livro de literatura e deve ser encarado como tal. Mas, para mim, é um livro em que podemos reconhecer muitas personagens de nosso cotidiano, não é algo exclusivo da Nigéria. Por exemplo, podemos reconhecer Eugene (pai de Kambili) em muitos homens machistas e violentos com suas esposas e filhos. Ou podemos ver em Kambili inúmeras adolescentes que vivem oprimidas e nem imaginam outro tipo de vida, porque a opressão domina todos os aspectos de sua vida. É um livro extraordinário, definitivamente.
Outro ponto que gostei em Hibisco Roxo foi a construção das personagens femininas, que, aliás, são as principais do livro. Elas não se encaixam em um padrão de representação das mulheres na Literatura. São mulheres reais, fortes e com personalidades próprias. Mesmo Kambili e sua mãe, Beatrice, mostram muita fortaleza ao lidarem com as tiranias de Eugene. Tia Ifeoma é uma professora universitária, mulher independente, que cria seus três filhos sozinha. Amaka, prima de Kambili, é uma jovem curiosa e questionadora, que valoriza imensamente sua cultura e ajuda sua mãe em todas as tarefas. Kambili é a narradora do livro, é dona de sua própria história. Personagens como essas, na minha opinião, só poderiam ser criadas por uma mulher. Chimamanda Adichie realmente caprichou em todas elas.
Eu demorei muito para ler Hibisco Roxo, mas ler esse livro agora foi uma ótima maneira de começar minhas leituras do ano. Li tudo muito rápido, porque me senti envolvida com a história. Posso dizer sem receios: vocês não se arrependerão de ler essa obra-prima e, se ainda anão conhecem a autora, vão se impressionar com tanto talento.
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Hibisco Roxo
Autora: Chimamanda Ngozi Adichie
Editora: Companhia das Letras, 2011.
328 páginas