Alguns escritores já foram tão lidos, comentados e estudados, que parece não haver mais nada de novo a dizer sobre eles. O curioso é que sempre há. Desde os clássicos mais antigos, até os mais contemporâneos, há sempre uma novidade em suas obras. É o caso de George Orwell. Ainda em vida e após sua morte, Orwell foi cercado de polêmicas sobre suas opiniões e seus livros, tornando-se, sem dúvidas, um dos escritores mais discutidos do século XX. Conhecido por obras como Dias na Birmânia, A Revolução dos Bichos e 1984, Orwell nunca escondeu que seus livros tinham uma ligação direta com suas experiências e posicionamentos políticos. O livro “Uma Vida em Cartas”, publicado pela Companhia das Letras, deixa evidente seu ponto de vista e seus sentimentos sobre esse e tantos outros assuntos.
Trata-se de uma coletânea de cartas enviadas por Eric Blair – nome verdadeiro de George Orwell – ao longo de sua vida. Nessa compilação também estão algumas cartas recebidas por Orwell e enviadas por sua primeira esposa, Eileen Blair, quando o assunto dizia respeito ao seu esposo, ou à vida do casal.
“Uma Vida em Cartas” não se trata apenas de cartas escolhidas ao acaso, mas de uma seleção criteriosa de Peter Davison (estudioso da obra de Orwell e organizador de outras coletâneas sobre o escritor) e Mario Sergio Conti (para a edição brasileira). As cartas selecionadas para esse livro fazem parte de um exercício interessante de contar a vida de Orwell, desde seu período nos colégios em que estudou, passando por seu início de carreira como escritor, seu trabalho como jornalista, o casamento, a participação na Guerra Civil Espanhola, os embates políticos, a paternidade, até sua morte. Em certa media, é a vida de Orwell contada por ele mesmo, não por meio de uma autobiografia, mas sim por meio de cartas escritas ao longo dos anos para seus amigos, conhecidos e familiares.
Três temas principais chamaram minha atenção nesse livro e, claro, na vida do escritor inglês. O primeiro é seu trabalho como escritor. Lendo suas cartas, vemos que a vida cotidiana de Orwell, suas ideias e opiniões estavam em total sintonia com o que escrevia. Ou, nas palavras de Mario Sergio Conti, na nota sobre a edição brasileira, “George Orwell pertence à família dos escritores para os quais viver se confunde com escrever.” Percebemos isso em seus comentários sobre os livros, artigos e resenhas que gostava ou não em seu repertório (os mais detestados eram os encomendados), ou como estava sendo difícil dar continuidade a um trabalho, por exemplo. Percebemos também em suas cartas ao seu agente e seus editores, afirmando que não estava disposto a modificar nada em seus livros, por razões políticas. Mas o mais curioso, para mim, foi ver que as primeiras cartas, mesmo depois de já ser um escritor reconhecido, eram assinadas como “Eric Blair”. Claro, eram cartas para sua família, seus amigos, às vezes leitores ou outros escritores. Não era uma publicação. Entretanto, mesmo esses documentos pessoais, aos poucos, começam a ser assinados como “George Orwell”. Como se a separação entre sua vida pessoal e sua identidade como escritor já não existisse, se é que algum dia existiu. Um trecho interessante de uma carta a seu agente literário, Leonard Moore, ainda em 1932, mostra Orwell em dúvida sobre seu pseudônimo:
“Quanto a um pseudônimo, o nome que sempre uso quando vagabundeio etc. é P. S. Burton, mas se o senhor achar que não parece um tipo de nome provável que tal Kenneth Miles, George Orwell, H. Lewis Allways. Acho que prefiro George Orwell.” (p. 59-60)
Neste momento, Orwell talvez nem imaginasse que seu pseudônimo seria conhecido em tantas partes do mundo, por meio das traduções de seus livros. Já imaginaram: “A Revolução dos Bichos – por Kenneth Miles”?
Outro tema que me chamou a atenção foi em relação ao seu interesse político. Devemos dizer, não apenas político, mas social acima de tudo. Esse é um assunto um pouco polêmico. Orwell foi acusado diversas vezes de ser fascista por causa de suas críticas ao Comunismo stalinista. Não apenas em sua época, durante a participação no conflito na Espanha, ou com a publicação de “A Revolução dos Bichos”, mas até os dias de hoje, por leitores menos atentos. A verdade é que Orwell era contrário a qualquer regime autoritário e direcionava suas críticas também ao capitalismo inglês e estadunidense. Entretanto, por fazer parte de um grupo de esquerda rejeitado e perseguido pelo Partido Comunista – o Partido Obrero de Unificación Marxista (partido comunista revolucionário antistalinista sob cuja égide Orwell luto na Espanha) – o escritor obviamente não deixava de enviar suas críticas mais intensas e diretas ao regime da União Soviética. Em suas cartas vemos um sentimento de decepção, misturado com revolta e o esforço contínuo de esclarecer questões que a imprensa (inclusive a imprensa de esquerda) publicava sobre sua pessoa, ou o POUM. Vemos ainda que Orwell levava a sério a luta popular, defendendo inúmeras vezes que os cidadãos precisavam se armar para lutar contra os diversos tipos de opressão. Fica evidente que seus conflitos e seus posicionamentos aparentemente contraditórios são de um homem que viveu em uma das épocas mais turbulentas da História e, ainda assim, permaneceu firme em suas convicções.
Um terceiro tema que me interessou bastante foi a participação tão intensa e próxima, mas ao mesmo tempo, tão independente de Eileen Blair na vida de seu esposo. Suas cartas nos apresentam uma mulher dona de uma ironia fina e bem humorada. Mestre em psicologia pela Universidade de Oxford, ela dividia com Orwell não apenas uma vida amorosa, mas parecia haver também uma cumplicidade intelectual. Eileen chegou a ir para a Espanha na mesma época em que seu marido, atuando em outros setores. Também trabalhou para o governo da Inglaterra durante a guerra. Sua participação nesse livro nos mostra uma personalidade incrível, que nos diverte e emociona, como se suas cartas – inclusive as que enviou pouco antes de sua morte – tivessem sido escritas para que, de fato, nós lêssemos.
Mas enquanto Eileen recebeu grande destaque em “Uma Vida em Cartas”, a segunda esposa de Orwell, Sonia, ficou meio apagada. Ela aparece já no final, em uma carta do escritor. Uma sessão ao fim do livro, que apresenta os correspondentes principais de Orwell, explica que eles se casaram quando Orwell já estava doente – embora com grandes expectativas de se recuperar – e que ela é a principal responsável por manter a memória do escritor viva, criando o Arquivo Orwell, que mantém sua obra preservada. Eis uma crítica a se fazer ao livro. Se, como dito anteriormente, esse livro é uma história da vida de Orwell escrita por ele mesmo por meio das cartas, não podemos nos esquecer de essas cartas foram selecionadas por outras pessoas. Portanto, a história é contada por um ponto de vista que privilegiou certos assuntos e personagens, em detrimento de outros que, talvez, merecessem mais que uma nota.
Sempre pensei que as cartas enviadas por escritores e intelectuais falam tanto sobre sua produção literária quanto as próprias obras. Além, claro, de nos apresentar outros lados – mais humanos, mais pessoais – dos escritores. Portanto, ler essas cartas é uma espécie de imersão no mundo deles. Algo que talvez não tenhamos nesse momento de redes sociais e comunicações muito mais rápidas que uma carta. De certo modo, talvez uma perda para a memória e conhecimento de autores contemporâneos.
Uma Vida em Cartas
Autor: George Orwell
Editora: Companhia das Letras
Páginas: 526