Para o grande público Jessica Jones só se tornou conhecida a partir do seriado. Quem acompanha os últimos 20 anos dos selos Marvel já esbarrou com a heroína, seja acompanhada pelos Novos Vingadores, Homem-Aranha, Demolidor ou em sua própria história. Lançada em novembro de 2001 pelo selo inédito MAX Comics, ALIAS apresenta a personagem em um cenário um pouco atípico das linhas editoriais principais da Marvel. Em clima noir, Jones é uma detetive particular que detesta seu passado como super-heroína, mas sem abdicar totalmente de sua influência e amigos daquela época. Sua rotina é basicamente tentar não ser presa, um autoflagelo aqui, uma interação nihilista e, claro, chafurdar a vida de algum cretino, indicado por qualquer cliente que paga bem para saber os podres de seus parceiros e parentes.
Um paralelo com a série de TV é necessário, já que toda obra do universo Marvel passa por adaptações e reboots, independente se é apenas uma mudança de autor ou formato para TV e Cinema. Em ALIAS Jessica tem um passado um pouco parecido: a adolescente Jessica Campbell do Queens viajava com os pais e o irmão e, durante uma discussão, seu pai perde o controle do carro e bate em um comboio de caminhões. BAM todos morrem, menos Jessica que foi contaminada com material radioativo, fica em coma por uns 6 meses e quando acorda percebe-se só e com alguns poderes. No orfanato, ela é direcionada para outra família e assume o sobrenome deles: JONES.
O interessante de sua história é como o autor insere Jessica nesta Nova Iorque com 58 heróis por metro quadrado. Em sua adolescência, estuda na mesma turma de outro encapuzado, Peter Parker. Antes de ele ser contaminado por uma aranha radioativa e Jessica passar por seu próprio martírio, a garota era apaixonada por ele e, quando ela retorna a escola se vê excluída completamente por todos. Esse contexto é interessante para entender a fúria da menina abandonada que, em algum momento da vida, deve crescer em um bairro que odeia mutantes e inumanos. Vendo por esse lado é até plausível que a cada três palavras, duas sejam palavrões. Luke Cage é um dos primeiros personagens que ela se relaciona na HQ, assim como o advogado Matt Murdock (Demolidor não dá as caras, só o Matt mesmo), Scott Lang (que só é visto como Homem-Formiga apenas uma vez) além de sua melhor amiga para todas as brigas: Carol Danvers, já em sua fase Vingadora como Capitã Marvel. No seriado não foi possível unir as duas devido a produção do filme da Capitã, então foi substituída por Trish Walker.
MAX Comics e Brian Michael Bendis
A primeira história de Jessica Jones no Universo Marvel foi também o início das produções do selo MAX Comics (feito sob medida para Brian Michael Bendis, por assim dizer) cuja principal característica é a produção de conteúdo explícito. Três anos antes, a Marvel já diversificava seu mercado com a linha Marvel Knights, voltada para o público adolescente e jovem adulto, porém ainda com alguma cautela ao se tratar de conteúdo +18 (okay que o Justiceiro também faz parte deste selo e tem muita cena acima da faixa etária). Esses foram os primeiros passos para a Editora migrar de vez para os conflitos deste século, revisitando e criando novos prelúdios para um penca de personagens.
ALIAS Investigations também é o nome da agência de uma mulher só, tendo Jessica como detetive particular – na sigla em inglês P.I. (private investigator) e após muita insistência o adolescente Malcolm como assistente. A obra é criação de Brian Michael Bendis lhe rendeu o Prêmio Eisner de Melhor Escritor nos anos de 2002 e 2003, junto a outras obras assinadas por ele no mesmo período – Demolidor (a partir do arco “Wake Up” presente no vol. 2, #16–19) e Ultimate Spider-Man (2000-2011), este último considerado um dos marcos do herói na era moderna dos quadrinhos deste século.
Poderia gastar muitas linhas elogiando a genialidade de Bendis ao criar novos e velhos personagens, sobretudo com habilidades além da nossa perspectiva na vida real, inseridos em cenários tão críveis. Apesar de Jessica ter habilidades sobre humanas (err, quer dizer, sua mutação é adquirida por fatores ambientais, mas os mutantes no Universo Marvel são aqueles com poderes fisiológicos de nascença), ela é tão real quanto qualquer um de nós, justamente porque sua habilidade sobre-humana é completamente descartada na história, focada em sua perspicácia e inteligência para cruzar informações e relativizar o contexto sobre sua existência em uma terra-616. Talvez seja este o aspecto que a torna especial dentro da categoria dos heróis (ou anti-herói se preferir).
É fácil se identificar com ela. Jéssica tem um sentido de prioridade de vida quase nulo, suas decisões são péssimas, deixa claramente os vícios a dominar, não tem muitos amigos e os poucos que tem prefere distância, tem uma relação traumática com seus familiares e, acima de tudo, se sente solitária num mundo onde toda hora um prédio vem abaixo devido a luta de heróis e vilões de sua cidade.
Um dos pontos mais interessantes dentro da narrativa de ALIAS é como os humanos nas cidades são retratados nas histórias em quadrinhos. Durante um ataque de um Abutre ou Doutor Octopus qualquer, os humanos se veem perdidos no ambiente de guerra. Bendis resgata o olhar para este contexto e, com Jessica, reforça a importância de se construir relações com aqueles que estão em volta do conflito principal. Mesmo que o herói tente lutar com seu próprio medo, é ele quem deve enfrentar o vilão e, sim, para ajudar aqueles que não podem fazê-lo. E, independente se o cenário é apenas uma cafeteria ou um bar, os diálogos entre aqueles que não tem poderes e Jones são os mais marcantes. Talvez por nos mostrar que a partir do fantástico, os humanos guiam seus conflitos numa perspectiva menor, mas proposital, como forma de se afastar de seus próprios fantasmas e medos.
Bendis articula bem os arcos de cada minisódio dentro do contexto das #28 edições de ALIAS. Cada arco tem como principal função apresentar enredos paralelos da vida de investigação, cruzados com uma cidade de heróis. No ritmo da história, pequenas informações são inseridas e resgatadas mais à frente, num vai e vem característico de uma obra audiovisual. A construção dos quadros funcionam bem como storyboards, onde a expressão corporal é parte da linguagem das personagens. Muito inteligente, Bendis deixou para a última parte o terror da vida de Jones, em Origens quando se fala abertamente de sua vida pregressa como Safira e seu encontro com o Homem Púrpura. Lembrando que Killgrave já era um velho conhecido do Demolidor (arqui-inimigo) quando cruza com Jones em ALIAS, mas aqui ele ganha uma atenção especial no roteiro, tornando-o o ser mais perigoso na Terra-616, até para os Vingadores.