Antes de tudo, quero avisar que será impossível falar sobre esse livro sem dar spoiler. Então resolvi dividir esse texto em duas partes. Na primeira, vou apresentar o livro e falar de uma maneira mais superficial, para quem tem interesse em saber sobre o que se trata, mas não quer saber o final. Na segunda parte vou falar sobre o que, para mim, é o ponto principal do livro, com um olhar um pouco mais atencioso para a obra, mas não posso fazer isso sem dar informações importantes sobre a história. Então, se você odeia spoilers com todas as suas forças, leia só a primeira parte (eu avisarei quando você deve parar de ler). Mas se você não se importa com isso, leia até o final.
A Hora Zero
– Gosto de um bom romance policial – disse ele. – Mas, como se sabe, eles sempre começam do ponto errado! Começam pelo assassinato. Só que o assassinato é o final. A história começa muito antes – com todas as causas e circunstâncias que levam as pessoas a certos lugares, num certo momento e num certo dia. […] – Todos se dirigem a um determinado local… E aí, quando chega a hora: o ponto máximo! A hora zero. Sim, todos convergem para a hora zero… Para a hora zero… – repetiu. (p.11-12)
Parece que nesse trecho Ágatha Christie estava falando sobre si mesma através de um personagem, sobre suas próprias preferências em um bom romance policial. É exatamente assim que ela começa o livro Hora Zero, apresentando os personagens e as circunstâncias que fazem com que todos eles estejam em determinado lugar, em um momento específico. É bem interessante porque nesse início do livro a autora dá dicas valiosas para desvender o crime que aparecerá no decorrer da história (em alguns casos, a gente só de dá conta de que eram dicas valiosas depois). Ágatha Christie vai montando um verdadeiro quebra-cabeças no decorrer dos capítulos e a peça final é surpreendente.
Hora Zero foi publicado em 1944. Resumidamente, a história é a seguinte: Lady Tressilian, uma senhora com a idade já um pouco avançada, recebe vários convidados em sua casa. Entre esses convidados está Nevile, que é uma espécie de afilhado-sobrinho, sua esposa Kay e sua ex-esposa, Audrey. Nevile e Audrey costumavam visitar Lady Tressilian em períodos diferentes do ano, para evitar qualquer situação incômoda, porém naquele momento foram no mesmo mês, não ficando muito claro, a princípio, se por ideia dele ou dela. O caso é que Nevile acredita que esse encontro poderia ajudar a deixar para trás todas as mágoas e rancores e fazer com que sua atual e sua ex-esposa se tornessem amigas. Obviamente, Kay não gostou muito dessa ideia. É preciso dizer que o que todos sabiam sobre o divórcio de Nevile e Audrey é que ele conheceu Kay e se apaixonou por ela, abandonando, assim, a esposa, que ficou muito mal por causa dessa situação. De fato, esse encontro não parecia ser uma boa ideia e Lady Tressilian deixou isso bem claro, mas nada pôde ser feito para mudar esses planos. Além deles, outros convidados apareceram, seja por um convite antecipado ou por algum imprevisto. Esse é o ponto da hora zero: como todos os personagens acabam na casa de Lady Tressilian (ou nos arredores).
Bem, durante essa temporada acontecem dois assassinatos. O primeiro é o do sr. Treves, um dos convidados de Lady Tressilian. Durante um jantar na casa dessa senhora, ele se dá conta de que há um assassino naquele grupo, de quem se lembra por causa de um caso muito antigo, no qual trabalhou como advogado. O segundo assassinato é o da própria Lady Tressilian, em seu quarto. Sabemos que a morte dela foi planejada, pois Agatha Christie nos conta isso no início do livro. Mas quem teria interesse em matá-la? E por quê? Poderia ser Mary, cansada de dedicar sua vida a cuidar dessa senhora? Poderia ser Nevile, Audrey ou Kay interessados na herança? Existem alguns suspeitos e talvez o leitor até consiga descobrir o assassino, mas eu acho difícil que alguém consiga descobrir a verdadeira motivação.
Vou confessar algo obscuro sobre mim: eu geralmente acerto quem é o assassino nessas histórias de mistério. Será que tenho uma mente meio maléfica? Não sei se devo me preocupar com isso. O caso é que eu já desconfiava do assassino desse livro desde a metade da história, porém, ao ler sobre o que o motivou fiquei realmente surpreendida. Por um lado, me surpreendi pela motivação em si e, por outro, por perceber que Ágatha Christie tenha abordado um tema tão caro ao feminismo naquela época.
Sobre esse tema vou falar a seguir, então se você não quer conhecer a identidade do assassino, recomendo que termine sua leitura neste parágrafo. Hora Zero é um livro incrível e conta com a última participação de um dos detetives criados pela autora, o superintendente Battle, da Scotland Yard. Se você se interessou, não perca tempo e procure para ler. E se você não se importa com spoilers, continue a leitura desse texto para ver o que me chamou a atenção e o que considerei a questão principal nesse livro.
Antes da hora zero
Já vimos que Agatha Christie dá importância nesse livro às circunstâncias que levaram as pessoas à hora zero. Quando ela apresenta os personagens no início, vemos vários aspectos nesse sentido, como uma viagem de férias que foi mudada no último momento, ou a troca de um hotel, ou o retorno àquele lugar para reviver algumas memórias, enfim, coisas aparentemente superficiais que reuniram todos os personagens em um local e momento específico. Mas a autora não revela o principal aspecto que leva ao assassinato de Lady Tressilian – obviamente porque assim perderia toda a graça de ter a revelação feita no final. Lady Tressilian morreu porque um homem não aceitou ser abandonado por sua esposa. Ficou confuso? Eu explico: o assassino do livro é Nevile, que mata sua tia para incriminar a ex-esposa Audrey.
A história que se conhece sobre o divórcio de Audrey e Nevile, citada acima, não é real. Na verdade, não foi Nevile que trocou a esposa por Kay, foi Audrey quem o abandonou porque amava outro homem. Quando Nevile descobriu que ela iria fugir com seu verdadeiro amor (que conhecia desde a infância), ele “amigavelmente” entrou em um acordo com ela, para ambos se separarem. Em seguida, ele se casou novamente com Kay, para dar a entender que a separação foi por sua causa e não porque Audrey já não queria estar com ele. Segundo Nevile, dessa maneira Audrey não mancharia sua boa imagem.
Já conhecemos essa história, não é mesmo? Na verdade, Nevile não queria ter sua própria imagem “manchada” como um homem que foi abandonado pela esposa. Além disso, ele não foi tão amigável assim, apenas estava planejando de que maneira se vingaria de Audrey. Mas por que, então, matar Lady Tressilian? O próprio Nevile confessa: matar Audrey não era suficiente. Ele queria vê-la humilhada e receber uma morte lenta de enforcamento pelo crime que supostamente teria cometido. Vejam bem, é um personagem que comete um feminicídio a fim de incriminar a ex-esposa porque foi abandonado por ela. É o machismo em todos os graus e formas possíveis.
Achei incrível ler isso em um livro escrito em 1944! Não sei se podemos chamar Agatha Christie de feminista. Em nenhum momento nesse ou em outros livros ela levanta essa bandeira e é preciso reconhecer certos posicionamentos machistas (e racistas) em algumas de suas obras. Ela é filha de seu tempo e sendo o machismo estrutural, podemos imaginar que ela não estava isenta a reproduzir algumas atitudes. Se nos dias de hoje ainda fazemos isso, imagine em sua época! Mas trata-se de uma mulher escrevendo! Obviamente, a autora não ignorava as dificuldades de ser mulher em sua sociedade e, com certeza, acompanhava notícias nos jornais, nos quais provavelmente apareciam – assim como hoje – muitas histórias de homens que matavam suas (ex) esposas por vingança. Não é à toa que ela abordou o tema nesse livro, essa mensagem comunica algo sobre a sociedade machista em que vivemos e que ela vivia.
Tudo bem, Agatha Christie não tinha a “carteirinha de feminista”, mas de alguma maneira a autora chamava atenção para a situação da mulher, os preconceitos e, no caso desse livro, a violência contra ela. Um pequeno trecho exemplifica a ironia sutil com que a escritora usa para abordar esses temas. Em uma conversa sobre Kay, a atual esposa de Nevile, vemos o seguinte diálogo entre Lady Tressilian e Mary:
– Ela é muito bem-nascida – disse Mary, conciliadora.
– Péssima estirpe – disse lady Tressilian. – Como já lhe contei, o pai teve que sair de todos os clubes depois daquele problema no jogo de cartas. Felizmente, morreu logo em seguida. E a mãe era famosa na Riviera. Que educação para a menina! Sempre morando em hotéis… e com aquela mãe! Aí conheceu Nevile nas quadras de tênis, empenhou-se em conquistá-lo e não descansou enquanto ele não abandonou a mulher, de quem ele gostava muito e acabou deixando de gostar. Para mim, ela é a culpada de tudo!
Mary sorriu, tímida. Lady Tressilian tinha a característica antiquada de sempre culpar a mulher e ser indulgente com o homem.
– A rigor, creio que Nevile tenha sido igualmente culpado – sugeriu. (p.39)
Enfim, eu não sabia de nada disso quando decidi ler Hora Zero e foi surpreendente encontrar esse tema em um desafio de leitura em que estou lendo apenas livros escritos por mulheres. O interessante de ler livoros de escritoras é que encontramos histórias e personagens que geralmente não vemos representados em outros lugares. Por isso é tão importante e por isso faço questão de compartilhar essas leituras aqui no blog. Após a leitura de junho, fiquei com muita vontade de ler e reler livros da Agatha Christie e ver o que mais posso encontrar sobre o tema da mulher em seus romances policiais.
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Se você já leu Hora Zero ou outros livros da autora, compartilhe seu comentário, eu vou gostar muito de saber.
Se você quer saber sobre os livros desse desafio literário que já li esse ano e os que ainda vou ler, clique AQUI.
A edição de Hora Zero que li foi essa AQUI.