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De boia-fria a dono de sebo e escritor: uma vida dedicada aos livros

Ivair Gomes teve uma infância pobre e de muita luta, mas todos os caminhos o levaram a enveredar pelos livros

Ivair Antônio Gomes nasceu no ano de 1969, em Campinas do Sul, no Rio Grande do Sul, é casado e mora em Florianópolis, SC. Formado em Tecnologia em Logística e pós-graduação em Governança de TI, Ivair é bancário. Além de Morte em Dezembro, é autor das obras Dias Difíceis (2001), O porteiro (2014), Morte no Camping e outros contos que não são de morte (2015), O viajante e o Explorador e coletânea Fora da Curva (2019), O coração sujo de Jerry Drago, o caçador de homens (2021) – esta última semifinalista do concurso da ABERST. Foi sócio emérito da Academia de Letra de Biguaçu. Faz parte da UBE (União Brasileira de Escritores), ABERST (Associação Brasileira dos Escritores de Romance Policial, Suspense e Terror) e da AGES (Associação Gaúcha de Escritores).

Sempre com um livro em mãos, Ivair Gomes nunca escondeu a paixão pela literatura. Quando mais novo, perdia-se no horário da escola porque lia na biblioteca. Nos dias em que precisava trabalhar na roça, durante a adolescência, caminhava quilômetros para trocar gibis com os colegas. Se tinha um tempo livre nas empresas por onde passou, abria revistas para ler. A paixão era tanta que, ao crescer, tornou-se proprietário de um sebo em Santa Catarina e começou a escrever.

Chegou a ter em torno de 21 mil títulos em seu estabelecimento, que precisou ser fechado devido à baixa viabilidade econômica. Dono dessa história inspiradora, apaixonado por romances policiais e autor do thriller Morte em Dezembro, Ivair comenta em entrevista sobre a importância da produção literária nacional. Confira:

1 – Ivair, você já trabalhou como boia-fria, estofador, latoeiro, digitador, entre outras atividades. Como foram esses anos até se encontrar na literatura? E como é a sua relação com a literatura?

Ivair Gomes: Eu não tinha costume de ver televisão e tinha de economizar energia. Então, quando não estava na escola ou trabalhando, estava com um livro em mãos. Meus pais sempre foram humildes, mas sabiam o valor do estudo e da leitura. Nos meus primeiros dias de aula, eu fiquei várias vezes de castigo por perder o horário da volta do recreio. É que, ao bater o sinal do intervalo, eu corria para a biblioteca pegar um livro para ler. Muitas vezes a bibliotecária teve de me chamar ou me acordar, pois cochilava lendo.

Tinha de trabalhar, como todos os meninos do interior. Aos 12 anos, eu era boia-fria, um catador de algodão em Rosana, interior de São Paulo. Mas a roça era somente nos períodos de férias. Minha mãe e meu pai brigavam se a gente faltasse na escola. Eram rígidos com nossa educação, pois haviam sofrido demais na vida e não queriam que os filhos passassem pela mesma situação. Depois da escola, eu cortava campos e pastos de fazenda, para ir à casa dos meus colegas trocar por gibis do Tex, Zagor, Ken Parker… Andava de cinco a seis quilômetros em meio a bois, vacas, cobras.

Depois fui trabalhar em supermercado e, nas horas de folga, levava os bolsilivros de bang bang para ler. Mais tarde tive coleção de bolsilivros e gibis – mais de 3 mil exemplares. Fiz magistério, mas não cumpri oficio de professor, pois meu pai, que era operário de usina hidrelétrica, vivia viajando em busca de serviço. Em 1987, com 18 anos, fui parar em Itá, no interior de Santa Catarina. Ali comecei a escrever meus devaneios tolos, em meio a poemas e poesias, sem dó nem rima – e mais tarde publiquei em um blog. Em Itá, aumentei minha coleção de bolsilivros e comecei a escrever um romance ainda hoje inacabado, chamado “O Quinto Homem”.

2 – “Morte em Dezembro” é um thriller policial que ocorre em Florianópolis. Para você, qual a importância de ambientar histórias de ficção no Brasil?

I.G.: Trazer o leitor para um local onde ele pode viajar, conhecer os lugares e histórias que o livro mostra. Revelar um pouco do valor das cidades e dos lugares nacionais. Certa vez, um leitor comentou sobre isso, que conhecia o local retratado e ficou imaginando a cena do livro. Isso, para mim, é importante: colocar o leitor no local da cena para ele identificar o lugar e saber que aquilo que leu é possível de ter acontecido, ou acontecer no futuro. Assim, nós, autores nacionais, contribuímos para a curiosidade do leitor e levamos a ele a vontade de conhecer tal lugar. Dessa forma, estamos difundindo a cultura do nosso país e do nosso povo, que é tão rico e tão distinto em cada região.

3 – O livro começou a ser pensado no início dos anos 2000. Como foi o processo de escrita da obra e o período de pesquisa para a construção da narrativa?

I.G.: Não gosto de escrever sem pesquisar. A história eu tenho comigo, mas ela tem que ser crível. Foram anos de pesquisa e, depois, constantes alterações no texto para não ficar uma obra perdida no tempo. Cheguei a consultar autoridades policiais, estive várias vezes em alguns dos lugares citados. Em outros momentos, fiz pesquisas extenuantes para lá na frente ter de cortar algumas partes. Mas serviu como absorção de conhecimento. Às vezes, lemos centenas de páginas para usar em apenas um parágrafo o que aprendemos, mas isso é necessário.

O cenário do livro é Florianópolis, mas inclui Espanha, Itália, Estados Unidos, Irã e Montes Cárpatos. Várias vezes acordei de madrugada e fui, em loco, verificar alguns lugares que estão presentes no livro. O livro “O dia do Chacal”, de Frederick Forsyth, chamou minha atenção ainda em 1987, quando eu o li pela primeira vez. E isso ficou na minha cabeça. Em 1989, morando em Florianópolis, tinha a chance de ver aquilo de perto. Como se comportariam as autoridades policiais se tivessem à sua frente o mesmo desafio? Encontrar um assassino mercenário, sem nunca ter sido identificado por nenhum órgão de segurança internacional?

O livro é como me disseram: “Seco, intrínseco, focado na investigação, nos órgãos envolvidos nessa busca alucinante, pois a qualquer momento, o número de mortos pode aumentar, e, se ele conseguir realmente o seu objetivo, como sempre conseguiu, será o fim da Pátria Brasileira?”. O rascunho inicial do livro foi escrito em 1999, e lancei a primeira edição em 2013. Para isso, tive novamente que ler, reler e pesquisar novamente, pois muitas coisas tinham mudado. Mas creio que acabou ficando ainda melhor que a primeira versão.

4 – Você já tem uma longa carreira literária e é membro de associações literárias, incluindo a Associação Brasileira dos Escritores de Romance Policial, Suspense e Terror. Na sua visão, qual a recepção dos leitores brasileiros com relação às obras policiais e de suspense produzidas nacionalmente?

I.G.: Temos muitas obras lindas e autores talentosos. Ultimamente tenho lido vários autores nacionais, como Renato Fonseca, Victor Bonini, Gustavo Ávila, Daniel Pedrosa, Marcos Debrito, Vanessa Guimarães, André Vianco, etc. Mas infelizmente a crítica literária e os editores buscam algo mais garantido para a venda e dificilmente abrem espaço nas prateleiras para autores nacionais. É uma pena. Muita gente boa, muita obra boa, acaba não sendo conhecida. Os leitores brasileiros hoje já dão valor bem maior ao autor nacional do que nos anos 1990, por exemplo.

Os editores nacionais, salvo raras exceções, costumam valorizar obras que eu chamo de “crônicas urbanas”. É difícil e raro obras nacionais de aventura e ficção conseguirem destaque nas páginas literárias dos nossos meios de comunicação. Mas, no passado, isso já foi bem mais difícil. Mas temos que abrir espaço para o autor ao lado, não aquele que está longe. O autor nacional precisa de programas e incentivos nacionais para o seu trabalho. Precisa de concursos literários em todas as prefeituras, em todos os governos estaduais, uma olimpíada literária. Precisa de incentivo para o leitor poder comprar livros e obter restituição do gasto com compras de livros, principalmente, restituição sobre compras de livros de autores nacionais, sejam esses livros de literatura ou didáticos. É preciso que todos os espaços da arte sejam contemplados.

5 – Você é bancário, mas sua relação com a literatura começou há algumas décadas. Inclusive, já foi colecionador de HQs e dono de um sebo em Santa Catarina. Na sua perspectiva, qual o papel dos estabelecimentos de livros usados? De que forma eles viabilizam um maior acesso ao livro?

I.G.: O acesso ao livro é essencial para o crescimento de uma nação. Os livros fazem os homens, os homens fazem as nações. Um homem sem nunca ter lido não terá sabedoria para conduzir uma nação, será um cego guiando outros cegos. A sabedoria se adquire com a vivência, mas os livros ensinam muitas coisas. Por isso a importância de estabelecimentos como os sebos! Eles disponibilizam obras raras, antigas e difíceis de serem encontradas. Mas o principal é o preço menor. Isso faz com que cada vez mais leitores tenham acesso aos livros. Além disso, é uma maravilha ficar mexendo em uma prateleira cheia de livros.

Quando tive meu sebo, chegava todo dia um livro novo com uma história do seu dono. Não poucas vezes, ao adquirir um lote de livros, ali, entre páginas, tínhamos fotografias, cartas, recadinhos. Hoje sei que não conseguiria viver sem poder ler.

6 – Suas obras já foram traduzidas para o italiano, o espanhol e o inglês, e também assina outros quatro livros. O que podemos esperar para o futuro de sua carreira literária?

I.G.: Obras boas e cada vez melhores. O aprimoramento deve ser sempre nossa busca, não importa o que façamos, com a escrita não é diferente. Atualmente tenho três obras em andamento. Uma obra space opera teen com 90% do processo de escrita pronto; um outro thriller, envolvendo o tesouro dos templários e Portugal; e ‘Sete primos’, uma ficção científica teen, em que sete jovens, ao viajarem para o Egito, são levados até um planeta distante e desconhecido. Também tenho outros pequenos projetos que apenas estão na fase de rascunho.

 

Luciana
Jornalista e editora, mestre em rádio e televisão.

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