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Annie Ernaux

Quem escreve ficção vive de mentir. O leitor que acredita no que um escritor ou escritora escreve precisa conhecer a obra de Annie Ernaux. A escritora francesa, nascida em 1940, vencedora do prêmio Nobel de literatura em 2022, mente de uma forma peculiar. A autora de “Os Anos”, “O Lugar” e de outros livros recém lançados no Brasil pela Editora Fósforo, é precursora do uso da autoficção como alimento principal de sua obra.

Na autoficção, escritores e escritoras usam suas experiências e sua “pessoa física” como massa para livros diretos e secos. A resposta para a pergunta “isso aconteceu mesmo com você” fica mais difícil de ser solucionada para autores como Ernaux, César Aira, Philip Roth, J.M Coetzee, Ricardo Lísias,  Cristóvão Tezza, entre outros. 

A história de vida como material para a ficção

A autoficção é fundamental para a obra de Ernaux, mas não pode ser confundida com autobiografia. O contexto ficcional trabalha com um narrador que se parece muito com o autor. No caso dos livros de Ernaux, a França do pós-guerra, a vida de imigrantes, o trabalho no campo, as crianças francesas e os adultos endurecidos pela vida no começo do século XX, se confundem com os nomes dos pais e amores da premiada com o Nobel. 

Apesar de ser muito particular e de lançar um olhar próximo à vida da autora, os livros falam com os anseios naturais e universais. A dúvida, as regras sociais e o isolamento, presentes na obra de Ernaux são sentidos por todos os seres humanos. É possível que o leitor veja na história narrada sobre a família francesa de Ernaux características muito próximas às histórias de sua própria família. 

A autoficção dá o tom em “Os Anos”

O caráter de fofoca da narrativa de Ernaux e seu olhar aproximado da sua realidade é essencial para imortalizar a escritora, mas o texto é fluido, simples na escolha da palavra. A afetação passa longe, a sensação de ler um diário muito bem escrito é o que existe de mais especial na obra da discreta professora de um liceu no subúrbio parisiense. 

Annie Ernaux, nascida na região da Normandia, começou a publicar seus livros curtos e autoficcionais em 1974. No Brasil, nos últimos anos, a obra da autora ganhou a tradução exemplar da poeta Marília Garcia. A tradutora foi responsável por levar o texto excelente de “Os Anos”, de 2008, para a língua portuguesa. 

A juventude da narradora de Annie Ernaux

Está nas páginas de “Os Anos”, que recebeu os prêmios Marguerite Duras e François Mauriac: “o medo das partidas e do desconhecido, pois quando nunca saímos de casa qualquer cidade é o fim do mundo” Editora Fósforo. A simplicidade capaz de falar com qualquer um se mostra como figuras guardadas pela avó. A imagem de fotografias de outro tempo  que estão esquecidas e meio apagadas sempre são evocadas pela linguagem de Ernaux. Existe memória por todos os textos.

Na mistura forjada pelo texto de “Os Anos”, há espaço para o catolicismo que invade e pauta a vida das pessoas, a dureza do pós- guerra se confronta com o crescimento do consumo de carros e eletrodomésticos. O tempo passa sem interrupção como alguém que volta aos momentos e mistura as memórias de épocas diferentes. As crianças crescem sem a autora dizer nada. A mágica do texto acontece sem manobras bruscas. 

A linguagem das lembranças de “O Lugar” e “O Acontecimento”

O texto enxuto e objetivo causa no leitor a sensação de sentir o mundo particular de Ernaux. O leitor, por meio das escolhas da autora, vira cúmplice da autora e defensor da história da família francesa. A escritora faz o mesmo com “O lugar”, publicado originalmente em 1983 e pela Fósforo em 2021, em que conta o confronto de ideias entre gerações sem perder a ternura. Ao lembrar da origem de seus pais, Annie Ernaux olha para a sua vida e como a vida em família continua a existir, apesar das despedidas e mortes. 

O lugar que dá nome ao livro é a França vista pela filha de uma família do interior. O lugar é a posição social da filha ao refletir sobre a morte e vida de seu pai: “Talvez seu maior orgulho, ou até mesmo o que justificava a sua existência: que eu fizesse parte de um mundo que o desprezou”, Fósforo, 2021.

Memória e Família na obra da Nobel de Literatura 

A viagem pela vida continua em “O Acontecimento”, publicado em 2000 e traduzido pela Fósforo em 2022. Neste livro, a narradora tem 23 anos e está prestes a fazer e lidar com um aborto numa época em que o procedimento ainda era iliegal na França. A normalidade, a falta de descrição de sensações, o dia de uma professora que tem redações para corrigir e que espera para fazet um aborto, atingem o leitor. “eu revia constantemente a mesma cena embaçada, de um sábado e de um domingo de julho, os movimentos do amor, a ejaculação. Era por causa dessa cena, esquecida por meses, que eu estava ali” Fósforo 2022.

A obra extensa de Annie Ernaux, com mais de 20 livros, pode ser devorada em poucos meses. “A Vergonha” acaba de ganhar tradução de Marília Garcia e chegou às livrarias brasileiras em outubro de 2022. Os livros de Ernaux são curtos e a tranquilidade usada no texto levam o leitor por uma caminhada que pode provocar memórias que estão esquecidas na sua própria biografia. 

Luciana
Jornalista e editora, mestre em rádio e televisão.

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