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O Alegre Canto da Perdiz

“Na vida nada é princípio, nada é fim. Tudo é continuidade.”

 

Se eu tivesse que fazer uma lista dos melhores livros que já li na minha vida até agora, com certeza O Alegre Canto da Perdiz estaria nela. Havia muito tempo que não ficava impressionada com uma obra, mesmo tendo lido várias muito boas nos últimos tempos. Fiquei hipnotizada, encantada, empolgada, portanto, não esperem comentários neutros hoje, estou aqui apenas para contar tudo o que amei nesse livro.

Vou começar pela maneira como ele é escrito. É um romance que parece poesia. Ou é uma poesia em forma de romance, por muito estranho que isso possa parecer. Paulina Chiziane tem uma sensibilidade imensa com as palavras e dá até mesmo às cenas tristes certa beleza. No começo me causou estranheza a maneira como ela escreve, definitivamente não está dentro de um padrão do que chamaríamos de romance. Mas, aos poucos, a leitura foi se transformando em algo muito interessante, uma mistura de poesia com alguém contando oralmente uma história. Me lembrei depois do que Chiziane fala sobre não gostar de ser rotulada como romancista. Ela diz que conta histórias, algumas são curtas, outras mais longas e é “só isso”. Que jeito extraordinário e lindo de contar histórias!

Outro aspecto que gostei muito é algo que tem aparecido em todos os livros escritos por mulheres que tenho lido desde o ano passado:  o protagonismo feminino. Claro que são personagens diferentes em muitos sentidos, mas de alguma forma conseguimos nos identificar, porque são mulheres criando personagens femininos e, portanto, não é uma idealização do que, segundo um homem, uma mulher sentiria pensaria ou falaria. No caso de O Alegre Canto da Perdiz encontramos mulheres realmente incríveis, que nas condições impostas pela colonização conseguem construir maneiras de serem livres de algum jeito.

Daí vamos ao terceiro ponto que me fez gostar muito desse livro: a perspectiva da colonização e seus impactos. O contexto de O Alegre Canto da Perdiz é a colonização de Moçambique, especificamente a província Zambézia que, de certa maneira, é também um personagem do livro. O espaço geográfico é muito importante, o porto, as ruas, o rio, as montanhas marcam o movimento dos personagens e influenciam também na construção de suas personalidades.

Quando lemos/vemos sobre a colonização dos países africanos, seja em livros “oficiais” de História ou em manifestações artísticas, geralmente encontramos uma visão de fora da África, a do colonizador. Para mim é muito importante ter a visão de dentro e Paulina Chiziane generosamente nos oferece seu olhar sobre esse processo em seu país. Certamente não devemos classificar a obra de Chiziane como um tratado da colonização em Moçambique (ela provavelmente odiaria esse rótulo também), trata-se de um livro de Literatura. Mas como toda obra literária, não deixa de ser uma representação da realidade social, uma descrição, um relato parcial que tem grande importância, como diria Howard Becker.[1] Em O Alegre Canto da Perdiz encontramos questões sobre a dominação violenta dos brancos:

“ – Era o medo, compreende-me, era o medo. Eu tenho medo dos brancos. Eles são invencíveis. Dominam o fogo, dominam a água por emergirem das profundezas do mar. A nossa bruxaria é da terra, não resiste ao fogo nem à água. Por isso me rendo, antes que eles me matem.

– Um dia, esse poder conhecerá o seu fim.”

Encontramos também muitos pensamentos sobre a violência contra a mulher, seja praticada por colonizadores ou pelos próprios homens negros contra as mulheres:

“A violência é produto do patriarcado, porque os homens roubaram o poder às mulheres.”

Nesse sentido, Paulia Chiziane retoma os inúmeros mitos de fundação do mundo e da humanidade, nos quais a mulher é o centro e a origem de tudo. Eles são muito interessantes, mas um pouco longos, então não vou citar nenhum. Na leitura desse livro vocês poderão encontrar vários.

Chiziane também fala sobre os conflitos da mestiçagem forçada, fruto das violações dos brancos. Mas também fala sobre a ideia do “melhoramento da raça”, que levava mulheres negras a buscarem ter filhos com brancos como meio de ascensão social. Ideia essa que se insere em uma questão muito mais ampla, a da colonização do pensamento, da cultura.

“O colonialismo incubou e cresceu vigorosamente. Invadiu os espaços mais secretos e corrói todos os alicerces. Já não precisa de chicote nem de espada, e hoje se veste de cruz e silêncio.”

Enfim, essas e muitas outras questões aparecem em O Alegre Canto da Perdiz, enquanto Chiziane conta sua história, que gira ao redor de três mulheres: Serafina, Delfina, Maria das Dores e Maria Jacinta. O livro se inicia com Maria das Dores perdida, andando por aí nua, para o incômodo e raiva dos moradores locais. Aos poucos vamos conhecendo sua história, que para ser contada volta à história de sua mãe Delfina, sua avó Serafina e sua irmã, Maria das Dores. Volta à história de seu pai, José, antes escravo, depois assimilado do sistema e de seus filhos perdidos. A maternidade também é uma grande questão nesse livro. Uma história que parece linear é, na verdade, cíclica e por isso que não há princípio nem fim, tudo é continuidade. As dores separam e unem todos esses personagens, devo dizer que não há muitos momentos felizes. Mas como poderia haver felicidade em todo esse contexto de dominação e violência? Mas o final talvez dê uma dose de esperança a algumas pessoas.

Sei que não contei muito sobre o roteiro do livro, mas é porque acho que o mais importante aqui não é contar o livro e sim incentivar vocês a lê-lo também. Não tenho muito interesse em escrever resumos das minhas leituras no blog e acho que vocês também não têm muito interesse em ler sinopses por aqui. O que posso dizer é: leiam O Alegre Canto da Perdiz. É necessário conhecermos narrativas que não são carregadas de estereótipos e oferecem um ponto de vista de dentro e esse livro traz isso de uma maneira incrível. É um livro importante, bonito e sei que vocês vão gostar.

….

– Ps: Não coloquei a numeração da página nas citações, porque minha leitura foi num livro digital no Kindle. A numeração de páginas não é a mesma do livro físico e, inclusive, depende do tamanho da letra que você escolhe. Assim, sou incapaz de dar a referência específica. Me desculpem.

– A edição que li foi essa AQUI.

– Para ver a lista completa do meu desafio literário desse ano, clique AQUI.

 

[1] Becker, Howard. “Falando da sociedade”; “Jane Austen: o romance como análise social”. In: Falando da sociedade. Rio de Janeiro: Zahar Ed., 2010.

 

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