Imagine que você é uma mulher por volta dos seus 40 anos. Um casamento de 15 anos, dois filhos, um cachorro que você tem que cuidar, apesar de nem gostar tanto dele assim. Praticamente toda sua vida adulta até agora se resume em criar os filhos e adiar seus planos e sonhos pessoais porque, ao contrário do seu esposo que conseguiu alavancar a carreira mesmo sendo pai, você ficou estagnada profissionalmente após se tornar mãe.
Sua principal tarefa é cuidar dos filhos e do marido. Mas um dia esse homem resolve ir embora sem dar maiores explicações. Simplesmente pega suas coisas e sai de casa. Te abandona com seus filhos e com a loucura de tentar entender o que aconteceu.
Você consegue imaginar tudo isso? Talvez você já tenha passado por algo semelhante. Mas se não passou, consegue se colocar no lugar dessa mulher? Elena Ferrante faz isso no livro Dias de Abandono. Ela entra na cabeça dessa mulher e constroi uma personagem que narra com detalhes seus sentimentos após ter sido abandonada pelo esposo. O resultado é um livro sufocante.
Dias de Abandono é um livro pequeno, com capítulos curtos e uma linguagem bastante fluida. Mas eu demorei para conseguir terminá-lo porque me sentia sufocada com a leitura. Em alguns momentos não conseguia seguir, era como se eu estivesse diante dessa personagem – Olga é o nome dela – e ao invés de ler suas palavras, eu estivesse ouvindo ela me contar tudo pessoalmente. Minha vontade era de dizer: “cale a boca, eu já me cansei de ouvir falar sobre esse seu ex-marido”. O caso é que em cada capítulo Olga, que é a narradora da história, conta com detalhes como está sofrendo, seus ciúmes, sua angústia, o que imagina que o ex está fazendo, o que poderia ter sido diferente, o que ela acha que fez de errado… enfim, por mais que eu soubesse que ela tinha razão em se sentir daquela maneira, criei certa antipatia por Olga.
Em certo momento da leitura parei e me perguntei por que Olga me irritava tanto. Foi aí que me dei conta de como muitos padrões em relação a ser mulher ainda estão enraizados em mim, por mais que eu tente me livrar deles. Por exemplo, quando Olga fica tão mal que não consegue cuidar dos filhos (às vezes parece até que não gosta deles), ou quando maltrata o cachorro, quando ela passa páginas e páginas falando sobre o ex-marido, minha vontade inicial era de dizer: “acorda, mulher! Reage! Esquece esse cara, você tem filhos para criar”. Como se fosse fácil para ela se refazer tanto quanto foi fácil para ele, que foi embora rumo a uma “vida nova” e também não se importou com os próprios filhos. Por que ela não teria o direito de sofrer e tentar colocar as ideias no lugar com calma? Nesse momento parei de criticá-la e me senti mais próxima dela.
Um dos poderes de Elena Ferrante é esse: ela joga na sua cara todos os seus pré-conceitos sobre o papel da mulher e te mostra outros pontos de vista, não idealizados, sobre a maternidade e o casamento, por exemplo. Acredito que seja isso que chame tanta atenção para seus livros. Esses são temas constantes em suas histórias, sempre com uma perspectiva crítica e até meio irônica. Dias de Abandono foi o terceiro livro que li dessa autora e, até agora, foi o mais “pesado”, no sentido de ser mais direto, mais duro, mais realista talvez. Nesse livro você vai encontrar exatamente o que o título sugere: a passagem desses dias de insegurança, tristeza, raiva, frustração. Não é um livro fácil, mas vai te fazer pensar em muitas coisas e, portanto, vale muito a pena.
Não deixem de acompanhar o desafio literário. Para o mês de abril estou lendo Mulheres, raça e classe, da Angela Davis. Se você quer saber quais são os próximos livros do ano, veja aqui a lista completa. Talvez se anime em ler algum e me acompanhar nessa leitura tão especial.
Se você já leu Dias de Abandono, deixe aí seus comentários para eu saber o que você achou do livro, se teve uma sensção/impressão parecida com a minha.
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