Todo leitor viciado em livros costuma dizer que lê qualquer coisa. Não importa o que, é só pelo prazer de ler. Sabemos que isso não é totalmente verdade, mas, além disso, acredito que todos os leitores têm dois ou três escritores prediletos. Prediletos não apenas por gostar de seu modo de escrita, seu estilo, seus temas, mas também por se identificar com as ideias, com os personagens, com o próprio escritor. Tenho meus prediletos e entre eles está C. S. Lewis (autor de As Crônicas de Nárnia). Talvez um dia eu consiga me expressar mais e melhor sobre as impressões que tenho sobre esse escritor, hoje vou apenas falar sobre o livro “O Grande Abismo” (ed Vida), que li recentemente.
Esse livro é uma história de ficção que traz uma reflexão de Lewis sobre o Céu e o Inferno. A história começa com um homem em uma fila à espera de um ônibus que vai chegar, mas ele não sabe qual o seu destino. Entrou na fila por curiosidade e por notar que era o único lugar em que havia pessoas naquela cidade. Já na fila, ele começa a ouvir os comentários e histórias de algumas pessoas sobre a viagem e o lugar aonde chegariam. A verdade é que ninguém sabia muito bem como era, ou onde seria e alguns até desistiram de ir, saindo da fila. O ônibus, enfim, chega a um grande vale, mas não como qualquer um que pudéssemos imaginar, a descrição é de que aquele lugar “fazia o próprio Sistema Solar parecer algo interno”.
Devo dizer que não pude deixar de pensar na peça “O Auto da Barca do Inferno”, de Gil Vicente em alguns momentos da leitura. Certamente que são livros muito distantes um do outro. O Auto é do ano 1517, enquanto O Grande Abismo é de 1946! Tenho quase certeza de que Lewis não teve a oportunidade de ler Gil Vicente e tampouco seus objetivos ao escreverem os livros eram os mesmos. Enquanto Gil Vicente procurava fazer uma sátira social, Lewis tem realmente a intenção de fazer um exercício de imaginação acerca do Céu e Inferno. O que me fez lembrar da peça de Gil Vicente foi, em primeiro lugar, a ideia da viagem – de barco, ou de ônibus – que leva a lugares que ainda não são definitivos, mas muito importantes, digamos, no resultado final. Em segundo lugar, foi o fato de os personagens, em ambos os livros, não possuírem nomes, mas serem alegorias – em Gil Vicente muito mais evidentes – que nos fazem pensar que um personagem específico pode ser identificado a qualquer um, até mesmo a nós. Definitivamente, não sei se cabe algum tipo de comparação entre os dois livros, mas penso que são relações interessantes de se fazer.
Voltando à história de Lewis. O lugar em que os passageiros chegam não parece, logo de cara, agradável. O solo é duro como rocha, assim como todas as outras coisas são extremamente sólidas, de forma que é impossível andar por ali sem sentir dor. Na verdade, os passageiros ficam parecendo fantasmas naquela situação. Aos poucos, o homem (personagem principal) percebe que, de fato, para andar por ali é necessário ajuda. Essa ajuda vem do que ele chama de Espíritos: são pessoas que já fizeram esse caminho e agora podem ajudar outros a fazê-lo. Os Espíritos tentam convencer os fantasmas a caminharem junto com eles para outro lugar, além das montanhas. Nesse caminho, aos poucos, os fantasmas poderiam caminhar por conta própria. O homem escutava diversas conversas enquanto estava por ali e percebia o conflito dos fantasmas que não estavam dispostos a se arriscarem ou abrirem mão de algumas coisas. Até que se depara com seu próprio guia, que tenta lhe explicar aquelas situações e escolhas. Esses diálogos são decorrentes ao longo de todo o livro e neles percebemos de fato o que Lewis quer dizer sobre Céu e Inferno.
Uma das ideias mais interessantes presentes no livro (em minha opinião), vou apresentar nas palavras do guia, com uma citação:
“ – Filho – disse ele – é impossível você compreender a eternidade; quando Anodos olhou através da porta do Infinito, não voltou com mensagem alguma. Mas você pode ter uma ideia do que seja a eternidade se disser que tanto o bem quanto o mal, quando plenamente desenvolvidos, tornam-se retrospectivos. Não só este vale, mas todo o passado terreno deles terá sido o Céu para os que são salvos; não só o crepúsculo naquela cidade, mas toda a vida deles na Terra também será vista pelos condenados como Inferno. É isso o que os mortais não entendem. Costumam dizer a respeito de um sofrimento passageiro: ‘Nenhuma bem-aventurança futura poderia compensar isso’, sem saber que o Céu, uma vez alcançado, terá efeito retroativo e transformará em glória até mesmo essa agonia. (…) É por isso que, no fim de todas as coisas, quando o sol nascer aqui e o crepúsculo se transformar em trevas acolá, os Bem-aventurados dirão: ‘Jamais vivemos em algum lugar que não fosse o Céu’. E os Perdidos: ‘Sempre estivemos no Inferno’. Ambos estarão falando a verdade.” (p. 83)
Nesse trecho, dá pra perceber que a ideia de Purgatório se foi considerada em algum momento pelos leitores, não existe para Lewis. De qualquer modo, ele deixa muito claro no prefácio do livro que seu interesse não é oferecer uma visão definitiva sobre Céu e Inferno, mas que tudo não passa de um exercício de sua imaginação. Sabemos que Lewis foi um cristão anglicano entre os que mais faziam apologia ao Cristianismo em seu tempo. Em todos os seus livros de ficção não deixa escapar uma (grande) dose de influência e referência ao Cristianismo e foi criticado por isso em alguns momentos. Eu acredito que os livros de fantasia escritos por Lewis, podem ser lidos de diversas formas e receberem tantas interpretações quanto forem possíveis – nenhuma obra literária escapa disso. O que não acho interessante é desprezar a grande qualidade literária desse escritor por causa de seus pressupostos cristãos. Então para os que possam se sentir incomodados com esses pressupostos, indico a leitura como um livro de fantasia que é. E finalizo com as palavras de Lewis, em seu prefácio:
“… quero pedir é que os leitores se lembrem de que a obra é uma fantasia e naturalmente tem, ou pretende ter, uma moral. No entanto, as condições além da morte são frutos exclusivos da imaginação; não se trata nem de adivinhação, nem de especulação sobre o que, de fato, nos aguarda. A última coisa que desejo é incitar a curiosidade factual sobre pormenores do mundo do porvir.” (p.18)
O Grande Abismo
Autor: C. S. Lewis
Páginas: 147
Editora: Vida
Ano: 2009