Decerto é muito mais difícil falar sobre algo que amamos do que qualquer outra coisa. Para os demais temas o distanciamento é corriqueiro. Vemos o objeto como algo fora de nosso alcance, o que torna o relato mais crível, sem o véu da emoção. E por se tratar da concretização de um sonho, uma paixão que foi movida pela ansiedade de um ano inteiro, uma vida praticamente, acarreta numa nébula que impede as palavras de terem destino. Talvez porquê há um certo receio de que esta sensação acabe. As palavras são desnecessárias se tratando de Depeche Mode.
Ainda não consegui atentar que a pouco mais de que uma semana estive menos de 200 metros de Gahan, Gore e Fletcher. O trio inglês é responsável pela ruptura rítmica iniciada na década de 80 e que a cada novo álbum reflete sobre solidão, sofrimento e saudade tendo o amor como fio condutor, tanto em melodia quanto em suas letras. Depeche Mode é classificado como synth-pop, mas também é conhecido como pai das bandas góticas, e forte influência para uma incrível diversidade de artistas que vão desde Nine Inch Nails, Marilyn Manson, Rammistein, Linkin Park até Tori Amos e Pet Shop Boys. Johnny Cash, um admirador da banda, regravou Personal Jesus na década de 90.
Mais do que uma noite mágica, perceber que a cada acorde uma legião de mais de 25 mil pessoas, reunidas no Allianz Parque em São Paulo, repetiam um movimento corporal, quase que em sintonia aos lábios. Como se tudo contasse, cada segundo valeu a pena, inclusive o eco das vozes nas versões acústicas. Quando os vocais eram exclusivos de Martin Gore, não existia mais público, pois todas as vozes eram uma extensão da dele. Como um maestro, guiou nosso coro, em uma tentativa de que sua voz perpetuasse em todo o lugar. Insight e Home foram aqueles momentos em que as pessoas não queriam deixar o refrão ir embora, mesmo que fosse para dar lugar a mais uma canção.
O repertório pincelou todas as fases da banda, como uma amostragem de todo o seu potencial. Para mim que nunca havia os visto ao vivo, encontrar quase todos os álbuns no setlist foi uma das maiores alegrias de ser fã. A lista apresenta os singles de Construction Time Again (1983), Black Celebration (1986), Music for the Masses (1987), Violator (1988), Songs of Faith and Devotion (1993), Ultra (1997), Playing the Angel (2005) e claro o nome da turnê Spirit lançado em 2017.
Setlist Global Spirit Tour – São Paulo
Going Backwards
It’s no Good
Barrel of a Gun
A Pain that I’m used to
Useless
Precious
World in my Eyes
Cover me
Insight (acústico)
Home
In Your Room
Where’s the Revolution
Everything Counts
Stripped
Enjoy the Silence
Never Let me down againEncore:
Strangelove (Acustico)
Walking on my shoes
A Question of Time
Personal Jesus
Não havia espaço para decepção, mesmo entre os mais fervorosos que sentiram a falta de Heaven, Halo ou Wrong (canção que figurou no setlist na turnê Sul-Americana). A ausência de Sounds of the Universe (2009) e Delta Machine (2013) não foi tão sentida. Apesar de, após o show, ver alguns cantarolando estas canções na saída do portão A, acesso a rua Palestra Itália.
Apenas um show, diriam alguns. Mas para tantas vozes ali, estar na presença do trio foi quase um culto à memórias de festas que não tiveram fim, ou rasgar momentos de desilusão no quarto vazio. Contudo, depois de duas horas sob seus holofotes o que nos resta é esperar que suas canções continuem a guiar várias e várias gerações por aí, sem pretensão, sem exagero. Como um estranho amor ou aquela dor que costumava sentir. Talvez as duas coisas.