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Uma história simples, de Sch. I. Agnon

61f4bdaac7914dda21fe9452d08cfd5b9d081915Gostaria de analisar sucintamente o romance Uma história simples, de Schmuel Iossef Agnon, observando, a partir dos personagens (habitantes da cidade fictícia de Shibush), as transformações que foram ocorrendo na sociedade judaica tradicional do leste europeu no início do século XX.

Agnon é um dos autores mais relevantes para a literatura hebraica moderna. Existem muitos estudos a respeito de sua obra, que é extensa. Seu modo de escrever é bastante contido, sem nunca estabelecer julgamentos, deixando essa tarefa para o leitor. Sua ironia e crítica aparecem de maneira bastante sutil e inteligente, por isso muitas vezes o leitor pensa que ele considera aceitável algo que é julgado pelo próprio leitor como moral ou eticamente incorreto. Agnon é um autor que em suas obras faz uso dos elementos da tradição de maneira a apresentar as mudanças pelas quais ela passa.

Assim, ele fala da comunidade do shtetl e de sua decadência, especialmente na comunidade judaica do leste europeu, que estava absorvendo ideias do mundo ocidental e provocando alterações no modo de viver judaico. Em Uma história simples, Agnon apresenta uma sociedade assim, onde é possível ver um padrão de vida já bastante influenciado pelo pensamento ocidental, porém sem abandonar totalmente a tradição, fazendo com que seus habitantes vivam uma ordem que, com exceção dos elementos externos, muitas vezes se opõe àquela ditada pelos mandamentos bíblicos e pela tradição judaica.

O romance possui narrador em terceira pessoa, que algumas vezes utiliza o discurso indireto livre. A história se passa na cidade de Shibush, no leste europeu, no início do século XX. O protagonista, Hirshl Horovits, apaixona-se por Bluma, uma parente distante que vai viver em sua casa na condição de empregada, após se tornar órfã de pai e mãe. A mãe de Hirshl, Tsirl Horovits, impede um romance entre os dois, pois espera um casamento que lhe propicie vantagens econômicas, e Bluma, que não tinha nada para oferecer, decide sair de casa indo trabalhar com outra família da cidade. Hishrl, um rapaz que não luta pelo que deseja e sempre se submete à vontade da mãe, acaba se sujeitando e se casa com Mina, moça de família rica, apresentada inicialmente como moderna e intelectual. Porém, Hirshl nunca se esquece de Bluma e por isso de certa forma rejeita sua esposa e seu casamento. Devido à sua passividade e fraqueza em assumir o que sente e o que pensa (ou talvez por causa de uma maldição lançada contra o bisavô de Hirshl, dizendo que em todas as gerações da família haveria um louco), o rapaz entra em colapso e parece enlouquecer. Seus pais o levam para outra cidade e o internam em uma casa de repouso. Lá, o doutor Langzam utiliza um tratamento diferente: senta-se com Hirshl e começa a contar sobre sua infância, fazendo o rapaz conhecer valores tradicionais que não foram ensinados por sua mãe. A partir dessa compreensão, Hirshl decide se conformar e cumprir com suas obrigações de herdeiro, pai e marido.

Antonio Candido (1987: 53) afirma que “o enredo existe através das personagens”. Ele também diz que essas personagens, no entanto, só fazem sentido em um contexto específico. Um romance bem estruturado, segundo ele, precisa apresentar uma perfeita ligação entre personagens, enredo, ideias e técnica. Acredito ser possível verificar essa estrutura no romance em questão. Como disse acima,  Agnon possui uma técnica diferenciada, ao criticar sem criticar, ao trabalhar silenciosamente sem estabelecer nenhum tipo de julgamento. Simplesmente conta a história e deixa toda a crítica a cargo do leitor. Essa maneira de narrar é perfeitamente coerente com o título do romance (apresentando como simples algo que é realmente complexo). A coerência também se mantém nos personagens. Agnon os apresenta como planos (simples), apesar de que podem ser muito complexos, se estudados detalhadamente. O autor consegue ligar sua técnica ao enredo e este ao personagem, quando se dá a conhecer as transformações da sociedade judaica a partir do comportamento dos habitantes de Shibush.

Esses habitantes, por sua vez, representam a sociedade judaica europeia como um todo, em processo de desintegração. O indivíduo se comporta de maneira a representar a atitude do coletivo. Bakhtin (1993: 135) fala das “linguagens virtuais”, em que o sujeito que fala no romance  não profere um discurso individualizado, mas sim social, pois abrange o pensamento de um grupo. Dessa forma, pensamentos e comportamentos como os que serão analisados a seguir não se limitam a mudanças ocorridas apenas na cidade de Shibush. Essa é apenas uma ilustração de como estava a situação nas comunidades judaicas em geral.

No romance vemos vários exemplos de como essa “antiordem” acontece no shtetl  em Shibush. Começando pelo próprio nome da cidade, que significaria “engano” ou “erro”, pode-se observar a preocupação dos personagens em seguir fielmente os mandamentos de valor externo (a alimentação adequada, a vestimenta etc.) ao mesmo tempo em que desprezam grandes ordenações bíblicas (como a questão de se acolher um órfão, de não valorizar mais o dinheiro do que os sentimentos e as pessoas etc.). É possível ver também as irônicas contradições referentes ao casamento: os casais mais importantes da narrativa vieram de classes sociais diferentes. No entanto, eles mesmos são os que exigem um casamento dentro da “ordem”, ou seja, seus filhos devem se casar com alguém da mesma classe social. Ainda observa-se que a cidade espera um determinado comportamento de seus moradores, dentro desse novo padrão estabelecido por essas mudanças. Quando alguém foge do padrão, é considerado louco. Por último, a narrativa mostra a necessidade de o sujeito seguir os valores da maioria e restabelecer a ordem da qual se desviou.

É possível perceber, ao longo da narrativa, que existe uma grande preocupação com a questão das aparências e do ritual alimentício. Nesse sentido, a tradição permanece, já que os personagens se esforçam por mantê-la:

Se Tsirl não estivesse ocupada na mercearia, contrataria uma moça simples, não-judia. Porém, como ficava na mercearia e não podia preparar a comida conforme o ritual judaico, era obrigada a contratar, contra sua vontade, uma empregada judia. (p. 31)

Tsirl mandou fazer para seu filho roupas para Deus e roupas para pessoas, quer dizer, roupas para o Schabat, roupas para os dias da semana, e outras ainda que poderiam ser usadas tanto no Schabat como em dias comuns. Dessa forma, Hirshl poderia passear no Schabat, depois do almoço, diferentemente dos intelectuais de Shibush, que possuíam apenas roupas para o Schabat e roupas para os dias comuns. Com as roupas de Schabat, por serem muito formais, não podiam passear, e por causa da santidade do Schabat, não podiam passear com roupas do dia a dia. Portanto, no Schabat permaneciam presos em suas casas, como enlutados, que Deus nos guarde! (p. 109)

Todas essas preocupações parecem ser somente rituais, já que os personagens não são vistos como religiosos fervorosos, ao contrário, algumas vezes um personagem mostra ignorância quanto aos assuntos bíblicos e/ou do judaísmo. Como observa Nancy Rozenchan (2004: 191), famílias da classe média, como os Horovits, não dedicavam mais seus filhos ao estudo da Torá, o beit hamidrash era frequentado apenas por hábito. Ela também percebe que no romance não há nenhum personagem de destaque desse campo. O personagem Guedalia Tsimlich, por exemplo, não é profundo conhecedor dos mandamentos ou dos rituais. Além de passar a vida com medo de Deus lhe tomar tudo quanto possui, mostra ignorância quanto a aspectos religiosos:

Guedalia aborreceu-se ao ver que alguns convidados cantavam trechos da Hagadá de Pessakh com a cabeça descoberta. Ao ver o sogro de sua filha rindo, acalmou-se. Baruch Meir Horovits era um judeu temente, e se ele se ria é porque devia ser permitido. (p. 72)

Se, por um lado, os judeus de Shibush seguiam à risca as recomendações externas e, como já foi dito, desconheciam muitos aspectos da religião devido à sua não fervorosidade, por outro lado esses personagens muitas vezes desobedeciam a leis claras e importantíssimas da Torá. Essas desobediências muitas vezes tentam manter a aparência de estarem adequadas à convenção social, trata-se de algo normal para os moradores, e ninguém as questiona, nem mesmo o autor, mas somente o leitor. Por exemplo, uma das maiores obrigações do judeu é o de acolher e proteger os órfãos e as viúvas. No entanto, Bluma, após perder sua mãe (já era órfã de pai), procura seus parentes em busca de apoio. Ela ganha, sim, teto e comida, porém é acolhida na condição de empregada doméstica e nem sequer tem direito a um salário, já que é parente (p. 13). Outra grande desobediência está relacionada à ordem bíblica do “crescei e multiplicai-vos”. Tanto o casal Tsirl e Baruch Meir (pais de Hirshl) quanto o casal Berta e Guedalia (pais de Mina) e o casal Mirl e Chaim Nacht (pais de Bluma) tiveram somente um filho, já à moda das novas famílias ocidentais.

Mais uma questão que mostra as mudanças que vinham ocorrendo no pensamento dessa sociedade é a busca e o amor ao dinheiro. A vida parece girar em torno do dinheiro e todas as decisões são tomadas de acordo com o lucro que se pode conseguir., e não mais se importam com a tradição ou a espiritualidade. Tsirl e Baruch Meir sentiam um enorme prazer em, ao final de cada dia, poderem abaixar a porta da mercearia que possuíam e contar todo o dinheiro: “’Não há nada mais agradável do que ficar à noite na mercearia, tendo à sua frente seu dinheiro. Você junta cada centavo e o coloca no canto da mesa, observa e sente que alcançou o que queria.’” (p. 51).

Existe na narrativa uma situação bastante irônica com relação aos casamentos. Baruch Meir havia prometido casamento a Mirl (mãe de Bluma). Um compromisso como esse, de acordo com a tradição, não poderia ser desfeito. Contudo, ele a abandonou para se casar com Tsirl, a filha de seu patrão. Os dois tiveram um filho, que é Hirshl que, por sua vez, se apaixonou por Bluma, tencionando casar-se com ela (e isso poderia ser uma forma de resgate, pagando pelo erro do pai). Porém, seus pais que, quando se casaram, eram de classes sociais muito distintas, proibiu o casamento do filho com a moça pobre, justamente porque visava a um casamento por interesses econômicos. Então, Hirshl se casa com Mina, filha de Guedalia e Berta. Esse casal também queria que a filha se casasse com alguém de sua classe, apesar de que eles também se casaram em condição de desigualdade financeira. Ou seja, os dois casais desejavam para seus filhos um casamento lucrativo porque seus objetivos eram sempre baseados no dinheiro. A ironia reside no fato de que eles queriam para seus filho algo que não fizeram. E, pelo menos no caso de Tsirl e Baruch, de certa forma, seu casamento foi também por interesse. Tsirl estava ficando velha e não arranjava marido porque todos tinham medo da maldição (em que haveria um louco em todas as gerações da família). Então, ela se casou para não ficar solteira. Além disso, ela era uma mulher esperta e provavelmente havia percebido que Baruch seria um homem de sucesso:

Baruch Meir era daqueles a quem o sucesso sorria. Tudo o que suas mãos tocavam prosperava, e tudo o que lhe era ofertado multiplicava-se. […] O brilho do sucesso podia ser reconhecido no rosto de Baruch Meir, cintilava em sua barba e era visto em seus olhos, que sorriam mesmo quando ele estava só. (p. 17, 18)

Além desses, ainda aparecem outros casamentos estranhos no romance. Por exemplo, há o casamento de Toiber, o casamenteiro, recém viúvo e em pleno vigor físico, com uma costureira pobre, ranzinza e corcunda. Sua escolha foi baseada não nos sentimentos, mas sim na necessidade de ter uma boa dona de casa, que cozinhasse bem e cuidasse de seus filhos. Há também o casamento do dr. Knabinhut com uma moça de família rica, para que não precisasse trabalhar e pudesse se dedicar à causa socialista.

A antiordem ainda se manifesta na cidade como se estivesse tudo ordenado, apenas acontece de as coisas mudarem:

Mudam-se os tempos, modificam-se os conceitos. Cantores e cantoras, antes considerados um bando de desclassificados, de repente passaram a ser tratados com respeito. Estudantes passavam em sua companhia publicamente e os chamavam de artistas. (p. 34)

Desde que Guildenhorn fora morar em Shibush, as pessoas ilustres da cidade perderam sua força e os devassos tomaram conta da cidade, tornando Shibush um povoado de libertinagem, não havendo quem os eliminasse. As pessoas de Shibush ou temiam provocar Guildenhorn ou eram achegados a ele. Todos sabemos que casa que oferece alegria e bebida atrai amigos. Quem ia à casa de Guildenhorn ali encontrava pessoas que não imaginava poder encontrar. (p. 64)

As mudanças vão ocorrendo sem que ninguém as questione e, sem perceberem, começam a assimilar essas novas ideias em seus costumes, de maneira que aquele que vai contra esse novo padrão é taxado de louco :

‘Digo que meu tio era equilibrado e se fazia de tolo, pois, se seu comportamento fosse saudável, seu pai, ou seja, Shimon Hirsh, meu avô, cujo nome carrego, o casaria com uma mulher a qual não amava e desperdiçaria toda sua vida ao lado dela. Seria uma história triste! Faria negócios, teria lucros, enriqueceria, e as pessoas o respeitariam. Isso aparentemente é bom? Ui! Eu diria que, na verdade, seu coração estaria vazio. Se meu tio tivesse tido sucesso, seria considerado sábio, como não teve sucesso, foi considerado um tolo.’ (p. 144)

No caso de Hirshl a loucura veio apesar de ele não haver se revoltado abertamente. Porém, seu pensamento voltado ao impossível, isto é, poder viver com Bluma, indo contra as regras de compromisso matrimonial, fez com que ele enlouquecesse. Contudo, como seu conflito era apenas interior, ou seja, ninguém sabia que ele estava agindo em oposição à ordem, as pessoas não acreditaram em sua doença e pensaram que ele estava fingindo para poder escapar dos serviços ao exército. Essa atitude não foi reprovada pela família nem pela cidade. Tratava-se de uma mentira sim, mas justificável, já que Hirshl era casado e sua esposa esperava um filho seu. Por isso, Tsirl e Baruch agradeceram aos céus pelo surgimento do boato e o confirmaram.

Hirshl somente volta à consciência quando por fim entende a questão da tradição, que jamais foi ensinada por sua mãe, e entende que muitas vezes essa tradição sofre uma inversão de valores. Por isso, acima de tudo, ele deve se conformar e assumir a responsabilidade de pai e marido. Então, ele passa a pensar de maneira diferente, e ainda tenta dar razão à sua mãe, acreditando que a culpada é Bluma e não ele. Hirshl tenta também viver em harmonia com sua esposa, como se a amasse, apesar de que seus pensamentos muitas vezes o levam à Bluma.

Bluma seria no romance a encarnação da tradição anterior, ela é aquela que transcende toda a sujeira social, age sem hipocrisia, sabe como uma mulher judia deve se comportar, tanto com relação aos aspectos externos quanto aos internos. Ela seria a imagem da mulher ideal, que segue a tradição e cuida bem da casa. Mina, esposa de Hirshl, ao final do romance aproxima-se um pouco dessa figura, e isso agrada ao seu marido.

Um romance como esse só prova a genialidade de Agnon em utilizar discretamente a linguagem de duplo sentido para analisar a sociedade judaica e as transformações pelas quais ela passa. Uma história simples é um romance muito bem estruturado, em que o autor sabe se valer dos personagens para moldar seu enredo e construir sua obra. Haveria outros exemplos que poderiam ilustrar melhor o problema, há também outros problemas, o romance é rico em questões a serem discutidas. Porém, devido ao espaço deste trabalho, essas discussões ficarão para outra oportunidade.

Bibliografia

AGNON, Sch. I. Uma história simples. São Paulo: Perspectiva, 2002.

BAKHTIN, Mikhail. A pessoa que fala no romance. In: __________ Questões de literatura e estética (A teoria do romance). São Paulo: Ed. UNESP, 1993, p. 134-163.

CANDIDO, Antonio. A personagem do romance. In: CANDIDO, Antonio et al. A personagem de ficção. São Paulo: Perspectiva, 1987, p. 51-80.

ROZENCHAN, Nancy. A representação literária do drama social em Agnon. In: __________. Literatura hebraica: vertentes do século XX. São Paulo: Humanitas, 2004, p. 181-200.

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