Em entrevista, escritor e bibliotecário cearense Igor Girão fala sobre o lançamento Além do Véu e os diferentes formatos de publicação
Igor Girão é o bibliotecário responsável pelo setor de leitura acessível da Biblioteca Pública Estadual do Ceará (Bece) e militante pela acessibilidade cultural. Recentemente, deu mais um passo no universo das palavras e publicou o livro de alta fantasia Além do Véu.
A obra, que está disponível em versões física, impressa e em audiolivro, narra as aventuras de Samuel. O protagonista é um ateu que, depois da morte, tornou-se um anjo e deve cumprir a missão de ajudar uma jovem de Fortaleza.
Em entrevista, o autor cearense revela como iniciou sua carreira na literatura, explica o processo de estruturação da obra, além de detalhar as principais características do enredo.
Você tem uma carreira como bibliotecário, militante pela acessibilidade cultural e agora também se firma como escritor. Qual o principal objetivo com sua recente trajetória como autor literário?
Igor Girão: Sou um autor com deficiência e, por isso, sei o quanto é relevante levar a reflexão sobre a importância de dar apoio às pessoas que, a despeito de suas peculiaridades, são marginalizadas pela sociedade. Essas pessoas podem e devem participar do debate sobre os mais diferentes temas, porque “a leitura do mundo precede a leitura das palavras” (citação de Paulo Freire). Quero mostrar que as limitações, na verdade, não são das deficiências, mas de quem as enxergam como problemas.
“Além do Véu” é uma alta fantasia que conta a história de um homem que virou anjo e precisa ajudar uma jovem. Apesar desse universo fantástico, há elementos que se relacionam com sua vida pessoal?
I.G.: O livro não pretende transmitir nenhuma mensagem, mas elas estão lá, certamente. Sempre que eu explico algo sobre o livro em relação ao conteúdo, fica claro, ao menos para mim, que a narrativa angelical de Samuel tem muitas semelhanças com a minha jornada de escritor. Claro que não estou me colocando como personagem central do livro, mas Samuel, assim como eu, foi forjado por várias perdas e frustrações, e as derrotas sofridas o fizeram ser, a cada dia, um Samuel utópico. De forma alguma quero ser hipócrita e dizer que não há nada meu nele, mas, assim como ele, também tem muito de mim em outros personagens, como o Izac, a Brenda, o Anauã, a dona Iracema… Enfim, eu vivo a vida de todos eles nessas páginas. Olhei o mundo pelos olhos de cada um deles, e isso é, em suma, o papel e o prazer de ser um escritor.
Como ocorreu o processo de estruturação dessa obra, que apresenta vários arcos narrativos e um mundo diferente do real?
I.G.: Para tornar a narrativa, muitas vezes, densa e cheia de gatilhos entre as páginas tortuosas desse livro, fiz, sem falsa modéstia, um minucioso trabalho de manter a fluidez na escrita. Entre um parágrafo e outro, entre um ponto e uma vírgula, fiz questão de ser objetivo, sem deixar de ser sensível. A literatura de “Além do Véu” se colocar como arejada. Mesmo que, por vezes, seja densa, ela não é pesada, maçante ou tediosa.
“Além do Véu” aborda um tema comum na alta fantasia, que é a relação entre anjos e demônios e o que acontece em outro plano espiritual. Na sua perspectiva, qual o diferencial do livro?
I.G.: No meio de tantas obras nacionais e internacionais que tratam de assuntos semelhantes, “Além do Véu” se propõe a ser uma carta de amor à literatura nacional não apenas por ter a voz do nosso cotidiano, mas também por minhas referências saltarem entre as páginas. Eu escrevi esse livro unindo tudo que era relevante para mim enquanto filho, amante, amigo e herói. Mas por que não dizer um pouco de vilão, inimigo, traidor e capanga? Esse é o grande poder e o prazer de ser todas as personas, de ser o mundo que está nas páginas. Eu posso ser todos e nenhum, posso ter as trancas e as chaves, posso ser o goleiro e o artilheiro. Não posso esquecer que, para além de referências ou homenagens, preciso ser original, pelo menos até certo ponto. Preciso chamar a atenção para o estilo de narrativa focado nos personagens, nas suas opiniões e devaneios. Preciso chamar a atenção para algo importante, sem ser piegas. Preciso me afirmar como um autor que é diferente, literalmente usando outros sentidos para ler o mundo. Sou uma pessoa com deficiência. Isso é a minha fortaleza. Minha diferença é um diferencial.
Você publicou “Além do Véu” em formatos digital, impresso e de audiobook. Qual a importância de obras literárias, no geral, se tornarem cada vez mais acessíveis? Como você avalia a acessibilidade dos livros no Brasil, no momento em que vivemos?
I.G.: Refletir sobre a acessibilidade no Brasil hoje é fazer política, é entender que, mesmo com a tecnologia muito mais barata e de fácil acesso, ainda existem muitos analfabetos funcionais. O contexto é muito mais importante que o texto, mas adivinhem só: decodificar as palavras é apenas o primeiro passo. Quando destrinchamos as teias que ligam as coisas e, consequentemente, as relacionamos, começamos a fazer parte de uma linha de diálogo do mundo, dos que vieram antes e dos que virão depois de nós. Mas, sem querer perder de vista a acessibilidade, que, para mim, é muito mais sobre a dignidade das pessoas, sobre elas poderem se fazer ouvidas e participantes de debates. Para muitos, a acessibilidade é apenas um sinônimo de acesso, mas é um ledo engano. Acessibilidade é saber a importância de se apoderar de um mundo que está posto e não é pensado para todos, nem na literatura, nem na arquitetura, nem na cultura. A acessibilidade em nosso país ainda está engatinhando, mas lutaremos sempre para ela, um dia, voar.