Fiquei pensando em diversas maneiras de começar a falar sobre esse livro, perdi um bom tempo em tentativas frustradas, com uma vontade de deixar esse texto para lá e ir fazer outra coisa. Parece que quando vamos abordar um assunto sério – como o feminismo – cobramos certa postura de nós mesmos, ainda que seja por meio de palavras. Depois pensei que isso é exatamente o que Roxane Gay não faz em Má Feminista. Ela simplesmente sai escrevendo, como se estivesse conversando com o leitor. Essa foi uma das características que mais gostei em sua escrita. Pensei: “e se eu tentar fazer o mesmo?”. Então aqui estou, escrevendo sem rumo, apenas para contar por que amei esse livro e tentar te convencer a se aventurar nessa leitura também.
Comentei na publicação anterior que tinha um pé atrás com Má Feminista. O subtítulo que ele recebeu na tradução Brasileira foi o responsável por esse meu preconceito. Imaginava um livro bastante superficial, com historinhas “divertidas” que, no fundo, não teriam nada a ver com feminismo e só seriam um desserviço. Vejam o poder de um subtítulo! Além disso, havia lido alguns comentários na internet criticando um pouco a tradução, o que também me causava a preocupação em perder tempo com uma leitura que não iria gostar. Mas as indicações que recebi não vieram de quaisquer pessoas, são pessoas em quem confio no gosto literário e, principalmente, são feministas também, então decidir dar uma chance e posso dizer: zero arrependimento. O livro é ótimo!
De fato, a tradução pode dar uma confundida em alguns trechos. Mas não sei dizer se é porque foi mal traduzido mesmo ou porque a autora, escrevendo de maneira informal, usa expressões tão específicas do inglês estadunidense que realmente é difícil achar equivalentes em português. Não só expressões, mas um jeito que quem já viu milhares de filmes e séries dos Estados Unidos consegue identificar mesmo com a tradução, mas que em português fica meio estranho. De qualquer modo, não acredito que isso prejudique a leitura.
Bem, o livro está dividido em cinco partes: Eu; Gênero e Sexualidade; Raça e Entretenimento; Política, Gênero e Raça; e De volta ao meu eu. Em cada uma dessas partes há vários textos, supostamente específicos sobre esses temas. Por que digo supostamente? Porque a verdade é que tudo se mistura. Sim, tem certo direcionamento em cada uma dessas partes, mas acredito que a mistura vem justamente de um ponto de vista interseccional que defende Roxane Gay. Não dá para falar em gênero sem falar em raça, não é possível falar em entretenimento televisivo sem falar de política e ao falar dela mesma, não dá para fugir de suas vivências como mulher negra em um ambiente intelectual de maioria branca e masculina. Então em todos os ensaios presentes no livro, veremos em maior ou menor grau esses assuntos.
Mas por que “Má Feminista”? Existe isso de ser uma boa ou má feminista? Não é bem essa a ideia. A autora explica que esse termo surgiu como uma espécie de brincadeira, já que quando ela era mais jovem, não gostava de ser identificada como uma feminista. Até hoje essa palavra – que simplesmente denomina uma mulher que luta pelos direitos das mulheres e pela equidade de gêneros – tem certo peso negativo, porque a imagem que se faz de uma mulher feminista ainda é muito estereotipada. Roxane Gay se incomodava em estar associada a essa imagem que, definitivamente, não correspondia a ela. Além disso, sendo uma pessoa que vive em uma sociedade estruturalmente machista, a autora não está isenta de reproduzir muitas atitudes que colaboram com a opressão da mulher, assim como nós também não estamos. Por esse motivo ela começou a chamar a si mesma de “má feminista”, não é que ela não fosse feminista, mas que provavelmente não se encaixava em nenhum estereótipo nesse sentido.
Outra crítica feita por Roxane Gay é em relação às próprias mulheres que escolhem certas referências e as colocam em um pedestal imaginário: “a feminista exemplar” e qualquer coisa que essa mulher faça de “ruim” será motivo para ser atacada, como se ela não pudesse errar nunca. Sobre esse assunto, a autora fala um pouco na sua apresentação no TED (coloquei o vídeo no post passado, depois vejam lá). Mas logo na introdução do livro, ela também diz:
Sou uma má feminista porque não quero nunca ser colocada em um Pedestal Feminista. Dessas pessoas, espera-se que se comportem com perfeição. Mas, quando fazem merda, são criticadas. De modo geral, eu faço merda. Considere-me já como criticada. (p.9)
Ainda sobre ser má feminista, Roxane Gay faz uma crítica bem contundente ao feminismo branco de classe média e alta, que ignora a luta das mulheres negras, com o qual também não se identifica nenhum pouco. Para a autora, a luta feminista não avançará enquanto não a discussão racial também não ser feita.
Mas como eu disse antes, o livro não está centrado em debater o que é ser feminista boa ou ruim. É incrível a quantidade de assuntos importantíssimos que Roxane Gay consegue abordar de maneira tão leve. Ao ler seus ensaios é como se você se sente como se estivesse sentada (o) na frente dela, ouvindo-a falar. Tem momentos que você dá risada, outros que dá um nó na garganta e parece que entra um cisco no olho, outros que dá uma vontade de responder, porque parece realmente uma conversa. Definitivamente, ela escreve muito bem, de maneira muito objetiva e descontraída. Fiquei super empolgada lendo seus textos e curiosa para ler seus livros de ficção, por exemplo, para ver se seu estilo é muito diferente nesses casos.
Um dos meus temas preferidos nesse livro são os que falam sobre entretenimento e literatura, abordando a questão do gênero e da raça. Eu gosto muito de séries e filmes, é uma espécie de vício. Nem vou falar de livros, já é bem óbvio meu amor por eles. Sempre soube que, para além de entretenimento, essas produções falam coisas sobre nós enquanto sociedade. A arte não está dentro de uma bolha, então o que está ali representado importa e muito. Em Má Feminista Roxane Gay fala de vários filmes e livros, criticando quando acha necessário, relativizando quando também é preciso. Eu simplesmente me deliciei com esses textos.
Também gostei bastante de uma crítica que ela faz à catalogação de livros escritos por mulheres, como livros escritos para mulheres. Primeiro, como uma forma de menosprezar essa literatura, dizendo que ela não é importante, é só um livro para as mulheres passarem o tempo, já que elas não têm mais nada para fazer da vida, não é mesmo? (Pegaram a ironia aqui, certo?). Segundo, como forma de menosprezar escritoras mulheres. Por acaso os livros escritos por homens só podem ser lidos por homens? Aqui vou colocar a citação de um trecho que achei muito interessante:
Quando os homens se tornaram o padrão de referência? Quando coletivamente decidimos que escrever era uma atividade mais digna se fosse assumida por homens? Imagino que tenha sido o “sistema literário” que tomou essa decisão quando, durante muito tempo, os homens dominaram o cânone, e eram aqueles cujo trabalho foi chamado de digno, recebendo, assim, a maioria dos prêmios literários de prestígio e atenção da crítica.
O público do sexo masculino não deve ser a referência que aspiramos. Esta precisa ser a excelência e, se os homens ou o sistema não podem (ou não pretendem) reconhecê-la, devemos deixar a culpabilidade com eles, em vez de arcar com elas nós mesmas. Enquanto continuarmos considerando como meta o púbico masculino, não chegaremos a lugar algum. (p. 176)
Minha reação depois de ler esse trecho era só um alto e claro: SIIIIIM! Mas tem mais:
O rótulo “ficção para mulheres” é muitas vezes usado com desdém. Odeio como “mulher” virou uma ofensa. (…)
Pouco me importa se minha ficção é rotulada para mulheres. Sei o que minha obra é e o que não é. A denominação arbitrária de alguém não pode alterar isso. Pouco me importa se os homens não leem meus livros. Não me levem a mal. Quero que os homens os leiam. Quero que todos os leiam, mas não vou me consumir desesperadamente em função daqueles que não se interessam pelo que escrevo.
Se os leitores ignoram determinados temas, considerando-os indignos de sua atenção; se os leitores vão avaliar um livro pela capa e sentir-se excluídos porque ela é, digamos, cor-de-rosa, a falha está neles, não no autor. Ler tacanha e superficialmente é ler com base em um ponto de ignorância, e as escritoras não podem repará-la, não importa o tipo de livros que escrevam ou a forma como são comercializados.
É aqui que devemos começar a focar esta conversa em um ponto específico: como os homens (no papel de leitores, críticos e editores) podem começar a arcar com a responsabilidade de se tornarem leitores melhores e mais atentos. (p. 176)
Toda essa discussão me dá mais ânimo para seguir com minha meta de ler livros escritos por mulheres. Precisamos sair da bolha branca e masculina, por favor!
Bem, vou terminar por aqui meu texto, porque ele já está gigante. Sinto que não falei quase nada sobre Má Feminista, porque são tantos assuntos abordados por Roxane Gay, acho que cada ensaio daria uma conversa. Quem sabe no futuro eu vá escolhendo aleatoriamente vários ensaios para comentar um de cada vez? Seria legal, acho.
Por enquanto, apenas quero recomendar muito a leitura de Má Feminista – para homens e mulheres, acredito que vocês vão gostar das muitas chaves que a autora nos deixa aí para reflexão e discussão.
Em breve volto com a leitura de maio do desafio literário desse ano. Para ver a lista completa clique AQUI.
A edição do livro que li foi essa AQUI.
Vou adicionar o livro na minha TBR, parece muito bom. Se tem “textão” e mesmo assim ficamos insatisfeitas, creio que só lendo o material propriamente dito para entender tudo o que gostaríamos de dizer, e, ainda que você ache que tenha faltado falar algo, saiba que foi mais que suficiente pra instigar a leitura de Má Feminista.
Republicou isso em Memórias ao Vento.
Aaaah, que bom! É um livro que vale muito a pena a leitura, sim. Espero que goste! 🙂