(Atenção! Contém Spoilers!)
Na primeira parte deste artigo, apresentei um pouco o enredo da história e Tris, a personagem principal. Também escrevi a respeito de como a autora conseguiu desenhar a sociedade de sua ficção, mostrando-nos que o fracasso social e político deve-se à natureza má e caída do homem. Nesta segunda parte, pretendo dar prosseguimento às minhas considerações, analisando outros trechos da trilogia à luz do cristianismo. Se você não leu a primeira parte, poderá encontrá-la aqui.
No final de Insurgente e começo de Convergente entendemos melhor o que realmente está acontecendo nessa sociedade de facções. Na verdade, somente a cidade de Chicago vive sob esse sistema. Ao perceber que o problema era intrínseco ao homem, os líderes sociais decidiram realizar um teste, cercando a cidade e colocando ali dentro pessoas desmemoriadas, isto é, que tomaram o “soro da memória” e se esqueceram de toda a vida que haviam levado até então. Seriam observados do lado de fora, pois a ideia era que, se a pessoa se esquecesse de seu passado pecaminoso e violento, poderia começar de novo sem pecar. Obviamente, o resultado não foi esse. Às vezes, pensamos no quanto é injusto pagarmos pelo pecado de Adão e Eva, como se, apenas por culpa deles somos também pecadores. Mas creio que, se a história começasse toda outra vez e eu fosse colocada ali no lugar de Eva, teria agido da mesma forma ou pior. O ser humano é mau. Ele sempre escolhe o mal.
Curiosamente estou trabalhando na revisão de uma obra que discute os efeitos do calvinismo, especialmente na política, a partir do século 16 (há um capítulo dedicado também aos antecedentes da Reforma). Não posso passar a referência em português porque o livro ainda não foi publicado, mas deixarei o link aqui assim que isso acontecer. O autor se chama David W. Hall e o livro em inglês se chama Calvin in the Public Square. Há um capítulo em que ele mostra como o pensamento calvinista influenciou na filosofia política estadunidense no momento de sua colonização/fundação. Um dos pontos fundamentais da filosofia daquele momento era o de que, por mais inteligente que possa ser o homem, ele jamais será capaz de criar um sistema social perfeito, por conta de seu pecado. Consequentemente, qualquer sistema político ou social está fadado ao fracasso. A partir daí, justificava-se a necessidade de o governante se submeter à vontade divina, pois somente Deus é capaz de criar e conduzir um governo perfeito e imaculado. Os Estados Unidos, no período de sua fundação, levaram esse pensamento muito a sério. Mas, devido à natureza caída do homem e também após o Iluminismo surgir com suas ideias antropocêntricas, fazendo-nos crer na mentira de que, sim, há algo bom dentro de nós, nossa tendência é ignorar a Deus e sua vontade que é boa, perfeita e agradável. Na verdade, com ou sem Iluminismo, antes ou depois dele, o homem sempre acreditou ser capaz de alcançar coisas boas por seus próprios méritos, com sua própria bondade e defendendo seu sistema político favorito.
Outra coisa que me chamou muito a atenção foi a característica de um divergente. Uma vez que possui qualidades suficientes para se identificar com mais de uma facção, ele se torna mais difícil de ser controlado. Ele é capaz de ser corajoso (Audácia), altruísta (Abnegação), inteligente (Erudição), honesto (Franqueza) e amável (Amizade). Ora, estas são as características esperadas de um cristão, não que o cristão possua todas elas, mas deve buscá-las e, em Jesus, é capaz de alcançá-las. Jesus Cristo possui todas essas qualidades, por isso ele é o Divergente Supremo. Além disso, o romance apresenta o divergente como pessoas tementes a Deus e oriundas principalmente da facção Abnegação. Na parede do quarto de Quatro está escrito “Tão somente temei ao Senhor” (p. 296). Jeanine, uma das líderes da Erudição e a responsável por comandar o aniquilamento da Abnegação, confessa: “Uma questão que me preocupa (…) é a seguinte: Por que será que a maioria dos divergentes são pessoas de vontade fraca, insignificantes e tementes a Deus e, de todas as facções possíveis, geralmente originárias logo da Abnegação?” (p. 442).
O divergente não é um ser humano bom em contraste com seres humanos maus. Eles são igualmente maus que, inexplicavelmente, receberam essa capacidade rara. No livro Insurgente, quando Peter acusa Tris de ser tão má quanto ele, ela responde: “Talvez nós dois sejamos maus, mas há uma diferença enorme entre nós. Eu não me contento em ser assim.” (p. 342). Da mesma forma, o cristão não é alguém bom. Ele nasceu inclinado para o mal, escolhendo o mal, como todas as pessoas. A grande diferença é que, inexplicavelmente, o cristão recebe de Deus o dom de crer nele e escolher buscá-lo. Ou seja, o cristão só escolhe buscar a Deus porque foi escolhido antes. O cristianismo chama isso de graça irresistível, imerecida. Em 1João 4.19 lemos que só somos capazes de amar a Deus porque Ele nos amou primeiro, e não o contrário.
Tris descobre que possui essa qualidade de ser divergente. Ela não escolheu ser assim, bem como os outros divergentes da história também não escolheram. Ao contrário, eles foram escolhidos. Marcus, o pai de Quatro e um dos líderes da Abnegação, que também é divergente, disse a Tris: “Nós não somos daqui. Fomos colocados aqui para atingir um objetivo específico” (p. 405, de Insurgente). Em Insurgente, quando está prestes a ser executada pela vilã Jeanine, Tris finalmente começa a entender o que significa sua divergência. A primeira conclusão à qual ela chega é a de que o que lhe espera além da vida não é algo que dependa dela própria, nem de seus atos bons ou maus:
Acho que agora seria a hora de pedir perdão por todas as coisas que fiz, mas sei que minha lista nunca estaria completa. Também não acredito que o que quer que aconteça depois da vida dependa de uma listagem correta das minhas transgressões. (…) Na verdade, não acredito que o que vem depois dependa de maneira alguma dos meus atos. (p. 372).
Após conseguir fugir da morte com a ajuda da pessoa mais improvável (Peter), Tris se alia a Marcus para tentar salvar uma informação que poderá mudar todo o destino daquela sociedade falida, que estava sob a ameaça de ser tomada pelos sem-facção. Para isso, eles vão até a sede da Amizade buscar ajuda. Pela manhã, enquanto caminhava, Tris observou um ritual religioso e foi convidada a se unir ao grupo. Uma senhora segurou suas mãos, a olhou bem nos olhos e disse: “Que a paz de Deus esteja com você (…), mesmo em meio a dificuldades”. Tris lhe respondeu: “Por que ela estaria, depois de tudo o que fiz?”. E a mulher respondeu: “A questão não é você. É uma dádiva. Você não pode merecê-la, ou ela deixará de ser uma dádiva”. (p. 429). A graça de Deus, por meio de Jesus Cristo é exatamente isso! Uma dádiva que nós estamos longe de merecer. A questão não somos nós. Se coubesse a nós a escolha pela salvação, estaríamos todos perdidos. “Ao SENHOR pertence a salvação” (Jn 2.9).
Ainda não li Convergente, apenas o spoiler, mas o que posso dizer pelo que descobri é que Tris passa a entender tanto a sua função como divergente, que a usa em favor de seu irmão Caleb, um traidor, que não merecia sua misericórdia, e ela chega ao ponto de se sacrificar por ele.
Enfim, existem muitos outros paralelos a respeito dos quais eu poderia refletir aqui, mas o texto acabou ficando bem maior do que imaginei, então, se você deseja saber mais e levantar outra lista mencionando situações que você observou e que eu não coloquei aqui, leia o livro. É uma leitura empolgante, você não consegue parar de ler e dá dó quando você tem outras coisas para fazer e precisa fechá-lo. Ele tem os seus problemas, realmente não é uma boa literatura, no sentido técnico. Mas releve esses problemas e a experiência dessa leitura será maravilhosa como foi para mim!
Obs.: A quem interessar, deixo aqui o link de um artigo do pr. Josemar Bessa, a respeito da mesma trilogia: