Para nós que conhecemos e desfrutamos a vida sob os ideais da democracia é difícil acreditar e cogitar os abusos e as atrocidades que foram cometidas durante os regimes totalitários que infelizmente fazem parte de muitos capítulos da História da humanidade. Em “O homem é um grande faisão no mundo”, da Editora Companhia das Letras, a escritora Herta Müller escreve sobre as marcas que essas atrocidades e abusos deixaram na vida e no espírito de quem viveu e sofreu sob o domínio de regimes totalitários.
A experiência pessoal de Herta Müller com os traumas da ditadura e da perseguição política transparecem na essência dos personagens do livro. Durante o governo do ditador Nicolae Ceausescu, Herta foi perseguida e forçada a emigrar para a Alemanha.Sua história pessoal de dissidência e de perseguição política; as ameças de morte que sofreu; as acusações de ser colaboradora da Securitate ( a polícia comunista romena) que levaram muitos a se afastarem dela; o passado nazista do pai e a deportação de sua mãe para um campo de concentração; tudo isso torna o livro significativo e representativo da devastação causada pelos governos opressivos na vida de pessoas, famílias e nações.
A história do livro se passa num vilarejo da Romênia habitado por sobreviventes da Segunda Guerra Mundial.São homens e mulheres traumatizados e moldados pela opressão e privação e que vivem sob um regime opressor. A vida bucólica, estagnada e difícil dos habitantes do vilarejo os condena viver numa espécie de limbo. Nessa vida e nesse lugar de indefinição alguns moradores aguardam sua chance de sair enquanto outros preferem permanecer para sempre.Windisch e sua família desejam deixar o vilarejo e aguardam uma autorização para emigrar enquanto contam o tempo e enfrentam os dias de uma vida dura de trabalho e privação.Mas somente quando Amalie, filha de Windisch troca favores sexuais pelo tão aguardado passaporte é que eles finalmente conseguem ir embora.
A espera de cada dia.A angustiante contagem e o doloroso passar do tempo.A esperança que nasce e que depois morre com o cair de mais um dia.A corrupção das autoridades.O desespero que quem cede à ela; a violência e exploração sexual da mulher.O medo do futuro e do desconhecido.O incessante observar dos que deixam o vilarejo através da morte ou da sonhada e invejada emigração.A convivência com o doloroso e humilhante sacrifício de suas filhas e esposas pela liberdade.Assim se consomem os dias de Windisch e de muitos outros que vivem no vilarejo.Todas essas angústias e realidades são expostas através de relatos breves e carregados de poesia. Essa inusitada escolha da linguagem poética para falar de política, corrupção,violência etc, todos assuntos difíceis e naturalmente desprovidos de poesia, certamente destaca esse livro entre outros e o torna inovador.
A comparação do homem com o faisão simbolicamente alude à fragilidade e vulnerabilidade do ser humano, mas também remete à sua capacidade de se adaptar às dificuldades e aos desafios.Sem jamais querer desconsiderar o horror e os prejuízos que milhares de pessoas sofreram por causa de guerras e ditaduras.Sem qualquer intenção de fazer comparações forçadas e desproporcionais.Ainda que numa esfera e num contexto diferente e mais abstrato, todos nós somos grandes faisões nesse mundo e temos nossos próprios vilarejos a deixar, nossa própria relação angustiante com o tempo.Temos nossa própria cota de medos, incertezas e desafios diante das injustas realidades da vida.Entrar em contato com essas questões através da linguagem e de um olhar poético é uma experiência enriquecedora e diferente.Sem negar a dureza dos fatos, ao escolher falar de temas graves e dolorosos utilizando a leveza e a profundidade da prosa poética, Herta Müller não apenas desperta a consciência política e relembra a história, mas consegue tocar também o coração do leitor.