Foto de abertura: Adriana Franciosi / Agencia RBS
Sempre ouvi falar em Lya Luft, porém jamais sentira curiosidade de ler alguma de suas obras. Então me deparei com O tigre na sombra e tive uma belíssima surpresa. Encontrei uma autora que sabe poetizar em prosa, que consegue penetrar a alma do leitor ao estabelecer relações de identidade e reconhecimento entre “eu-leitor” e as personagens.
Trata-se de um romance cujo grau de complexidade minha compreensão ainda não conseguiu alcançar. Ele possui uma simplicidade enganosa. Antes de discutir esse disfarce, vou tentar apresentar o enredo da história. Dolores é a narradora-protagonista do romance. Ela nasceu com as pernas em tamanhos desiguais, e por isso mancava. Sua mãe a marcou “com o carimbo da indesejada”, pois nunca soubera demonstrar seu amor, vivia criticando a filha e a colocando para baixo, ao mesmo tempo que enchia de carinhos sua outra filha, Dália. Dôda (seu apelido), sentindo-se inferior às demais garotas, cresce com esse complexo. Ela descobre um meio de fuga através da fantasia. Assim, ela cria amigos imaginários. Um desses amigos é ela própria, que se sente outra pessoa quando se olha ao espelho. Depois de adulta, o complexo é esquecido durante muitos anos porque Dôda conhece dois amores, vindo a se casar com o segundo deles. Ao se sentir amada, sua deficiência é deixada de lado. Porém, ao final do romance, quando a protagonista se vê novamente sozinha, ela tenta em vão voltar a se refugiar no imaginário, já que durante esses anos ela aprendeu a firmar seus pés no concreto da realidade.
Eu havia dito acima que esse romance é um disfarce, desde sua forma (ele se passa por simples, mas não é) até as personagens, tanto as reais quanto as imaginárias. Temos Dália, a irmã da protagonista. Ela é tratada de maneira muito especial pela mãe, que a considera perfeita, pura, bem como seu nome de flor. Essa delicadeza é totalmente aparente e o disfarce é perdido quando Dália se rebela durante a adolescência e não consegue se estabelecer na vida de maneira digna, vindo a se perder por causa da bebida e dos homens. Temos também a própria Dolores. Ela consegue ser duas pessoas diferentes: Dôda, a manca, a feia, de quem ninguém gostava; e Dolores, a menina do espelho. Quando Dôda se sentava em frente ao espelho, ela tirava sua máscara de menina inferior e se tornava a Dolores, com quem conversava e se divertia. Dolores era Dôda em sua essência, era a imagem de sua alma. Ali em frente ao espelho ela podia agir naturalmente. Não corria o risco de parecer ridícula, não havia ninguém ali para dar risada dela.
Os disfarces continuam quando aparecem personagens imaginárias. Há o Deco, filho imaginário da empregada da avó de Dôda, com quem brinca nos degraus da varanda. Porém, a personagem mais interessante parece ser o tigre de olhos azuis, que está sempre à espreita, na sombra. Dôda e o tigre estabelecem um acordo silencioso, quando ela deixa uma lata de leite no jardim da casa de sua avó e, pouco tempo depois, quando ela retorna ao lugar, a lata está vazia. Os dois não se aproximam, não conversam, mas um nunca se esquece da presença do outro. Esse tigre é a marca do imaginário da protagonista, mas ao mesmo tempo é a representação do “eu” solitário, que não pode atacar, que vive na sombra. Dolores (a do espelho) sabia que era impossível haver um tigre no jardim, muito menos para vigiá-la. Dôda decide não pensar nisso e apenas aceita essa presença distante do tigre. Depois de adulta, quando ela parece assumir-se como a Dolores do espelho, toda essa fantasia é temporariamente esquecida. Ao ver-se novamente sozinha, já assumindo sua velhice, ela tenta retornar à fuga do fantasioso, porém não consegue mais, terminando por reconhecer a si mesma que “nenhum tigre tem olhos azuis”.
Lya Luft escreve seu romance em prosa, mas a poesia está sempre presente. Cada um dos quatro capítulos é iniciado com um poema, que de certa maneira remete ao que será narrado. Os poemas também parecem estar ali para deixar todo o capítulo com aroma de poesia. É por isso que a leitura não apenas me agradou, como também me emocionou. A história é curta, tem apenas 127 páginas; e então nós chegamos ao final da leitura com a sensação de que aquilo não devia ter acabado tão depressa. E lamentamos porque talvez o melhor fosse que Dôda jamais se desse conta de que tigres não têm olhos azuis.
Título: O tigre na sombra
Autor: Lya Luft
Editora: Record
Ano de publicação: 2012
Número de páginas: 127