Durante anos seguidos era com esta frase intimidadora que o pai de Antoinette Maguire terminava os estupros que cometia contra o ser que ele mais deveria proteger e amar.Como se não bastasse a agressão sexual que cometia contra a filha, ele ainda a torturava psicologicamente, dizendo que se contasse o segredo deles para a mãe, ela deixaria de amá-la.
Além do medo dos abusos do pai, a pequena menina era obrigada a sentir o medo de perder o amor da mãe que tanto amava. Mas um dia, quando ela finalmente teve coragem para contar o que o pai fazia, a atitude de sua mãe não poderia ter sido mais desconcertante. Ela ordenou que Antoinette nunca mais falasse sobre aquilo novamente. E ela não falou. Com a conivência e a omissão da mãe, seu pai ficou livre para dar lugar à sua perversão e assim condenar a filha a uma existência de culpas, aparências, sofrimento e violência. As memórias dessa infância destruída e perdida para o sadismo e a perversão de um “pai” estão registradas em “Não conte para a mamãe” (Memórias de uma infância perdida) de Toni Maguire, Editora Bertrand Brasil.Um livro chocante mas necessário por abordar um tema ainda tabu na sociedade: o abuso sexual.
Se ainda hoje a realidade da pedofilia permenace um tabu, nos anos 50, quando Toni era criança a situação era muito mais velada e difícil.Muitos dos acontecimentos que ocorreram em sua vida seriam impensáveis e inaceitáveis em nossa época.Por mais que a repugnância que as pessoas sentissem pela pedofilia na década de cinquenta provavelmente fosse a mesma que as pessoas sentem na atualmente, o estigma para as famílias que enfrentavam o problema e para a sociedade de modo geral eram maiores a julgar pelos acontecimentos relatados na história de Toni Maguire, devido talvez aos padrões culturais mais conservadores da época.Mas felizmente ainda que histórias de abusos sejam tão comuns hoje quanto deveriam ser naquela época, a reprovação social e o amparo às vítimas é infinitamente maior hoje em dia.
O período da infância é uma construção social relativamente recente e geralmente é aceita como sendo uma fase na qual o ser humano deve ter a proteção e o incentivo necessários para um desenvolvimento saudável, o que é garantido não apenas por mudanças culturais, mas inclusive por meios de leis e estatutos. Contudo é fato que esse direito proporcionado pela cultura e pelas leis é desrespeitado.Muitas pessoas provavelmente não tiveram uma infância ideal e foram forçadas a enfrentar as dificuldades da vida adulta mais cedo do que deveriam.Mas poucas pessoas ( assim quero crer) tiveram que enfrentar o horror, a brutalidade e a selvageria tão cedo na vida.
Os primeiros anos de Antoinette Maguire na Inglaterra, com a mãe enquanto o pai servia no Exército foram quase idílicos.Desse breve período de sua vida ficaram lembranças belas e ternas ao lado da mãe e da avó materna.Quando o pai resolveu ter uma vida civil ao lado da família a história deles estava fadada a passar por mudanças profundas e terríveis.Após deixarem a Inglaterra e partirem para a Irlanda, terra natal de seu pai, o mundo que Antoinette conhecia mudou.Após um breve período com sua grande e calorososa família irlandesa, Antoinette e os pais foram morar no interior isolado onde começou o suplício da menina.No primeiro dia na nova vida, no novo lar o pai de Toni revelou sua personalidade violenta e pervertida e iniciou sua onda de estupros e abusos.Ela tinha apenas seis anos.Foi violentada física, sexualmente e piscologicamente pelo pai até aos 14 anos quando ficou grávida dele e não foi mais possível manter os segredos e os estupros entre eles.
Os fatos que sucederam a descoberta dos abusos, em muitos aspectos, foram tão ou mais chocantes do que aquilo que os pais lhe infligiram.Familiares, vizinhos, médicos e professores, não foram poucos os que se mostram insensíveis e cruéis com o drama de Toni e lhe negaram ajuda e compreensão. Ela que era a verdadeira e a maior vítima desse terrível crime foi de fato a maior responsabilizada pelos erros dos pais.Seguiram-se uma série de injustiças e perdas na vida de Toni e todos esses dolorosos e traumatizantes acontecimentos são narrados pela perspectiva da menina que não compreende a totalidade do que lhe acontece.Isso torna a leitura especialmente dolorida ao acompanharmos os fatos narrados sob esta perspectiva de incompreensão de uma criança, mas também imprime muita sensibilidade ao texto.Esse detalhe faz toda a diferença na narrativa porque ainda que a leitura seja revoltante e pesada em muitos momentos, ela também é sensível e delicada em muitos outros.
O pai de Toni foi condenado e saiu da prisão alguns anos depois sendo recebido pela esposa e pelo restante da família. Já Toni nunca saiu da prisão que lhe foi imposta, já que ela recebeu uma condenação permanente a uma vida de devastação emocional e social. Muitos anos se passaram após o escândalo. Seus pais morreram sem pedirem perdão à filha. Antoinette cresceu e se tornou Toni, uma mulher em muitos aspectos bem sucedida, porém marcada por sua história familiar. É inegável que são muitas as dificuldades relacionadas ao problema da pedofilia. Pelo fato da maioria dos abusos ser praticado por pais, irmãos e pessoas próximas, os sentimentos da família em relação ao abusador podem se tornar confusos dificultando a resolução do problema e a proteção das vítimas do abuso.Socialmente ainda é preciso estabelecer de modo definitivo se o abuso sexual deve ser tratado como a manifestação de uma doença ou como a prática de um crime puramente.
As mudanças culturais que possibilitaram uma maior liberdade nas questões relacionadas a sexualidade atualmente podem causar a ilusão de que a sociedade está mais aberta para discutir e mais apta a lidar com todos os temas relacionados ao sexo.De fato houve muitos avanços nas últimas décadas e muitos assuntos e comportamentos se tornaram mais aceitáveis e confortáveis para a sociedade, mas a pedofilia ainda é assunto espinhoso seja na esfera familiar seja na esfera social. Refletir e procurar melhores formas de lidar com esse problema social e familiar se faz necessário para ajudar as crianças que estão sofrendo abusos e fazer com que histórias como a Toni Maguire sejam cada vez menos comuns no futuro. Apesar da sensibilidade que transparece na narrativa, devo alertar que esse não é um livro fácil de se ler. Por várias vezes tive que interromper a leitura para ordenar os meus pensamentos perturbados pelos relatos de atos de extremo horror dos quais o ser humano é capaz de infligir e também de sofrer. Mas por sua importância e pelo modo primoroso e sensível com que Toni Maguire contou sua história, ler este livro apesar de ser um exercício emocionalmente difícil é também uma oportunidade grandemente enriquecedora e necessária.