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Para Walter

E pensar que em 1918 Walter Elias Disney era apenas um garoto de 17 anos que ainda não sabia o que poderia ser da vida. Olhar para o último século sem imaginar que toda uma indústria pudesse ser transformada e construída a partir deste nome e que em 2018 esta companhia fosse dona de um dos maiores mercados de todo um mundo era um palpite que nunca poderia passar pela cabeça daquele garoto.

Seu legado deixou marcas profundas no imaginário popular. A literatura, a principal fonte de inspiração para a realização de suas obras animadas, foi um dos pilares para ressignificação e abertura de novas possibilidades. Das páginas para os frames, diversos sonhos foram sendo construídos, desde as equipes de animação, até distribuidores e, claro, o público que cresceu acreditando nas fábulas reeditadas pela magia Disney.

walt9Enquanto nos distanciamos de seus produtos, e até de nós mesmos, olhamos para as propostas de cinebiografias para compor melhor essa figura que fulgura em nossa imaginação. Walter foi de carne e osso, tinha amigos, uma família numerosa, casou com seu grande amor, teve duas filhas, fez promessas de amor, teve muito dinheiro, teve pouco dinheiro, faliu uma penca de vezes (antes e depois da Walt Disney Company), viajava, criava ilusões, brigava de porta aberta, se frustrava e, assim como nós, um dia morreu de câncer antes da aposentadoria. Mas o que está por trás do mito do empresário visionário?

Para tentar entender um pouco sobre sua história, indico duas outras, filmes que foram escritos a partir de suas vivências, disponíveis em serviços de streaming, Walt antes de Mickey e Walt nos Bastidores de Mary Poppins (que eu nunca vou entender o porquê de não terem deixado a tradução do nome original, Saving Mr Banks que flui melhor com o contexto da história). Assim como os filmes produzidos pela empresa, ambos tem por principal característica romancear um rastro do que foi descrito como real.

Os fatos foram baseados em uma história que permeia a queda e ascensão quase em sua totalidade. Walter tinha ambição, mas não com muita dificuldade de gerenciar suas ideias. Apesar de dominar o processo industrial e ser um líder para seus colegas de trabalho, as pendências financeiras fizeram boa parte de sua obra oscilar entre uma estreia e outra. Muita gente acredita que Walt Disney, a pessoa por trás da assinatura, foi o responsável pela concepção da personagem Mickey Mouse, mas essa atribuição é errada. Muitas dessas atribuições, inclusive, partem do imaginário que se construiu ao longo dos anos sobre a personalidade que assumiu a responsabilidade de colocar o seu nome, desconhecido até 1925, em uma companhia fadada ao fracasso. Mas é justamente das adversidades de seu caráter que hoje veneramos o nome, as obras e, porquê não, o homem e seu sobrenome.

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Antes de Mickey

Walt antes de Mickey conta a história de um garoto do Missouri que cresce em uma fazenda e sonha com seus desenhos. Seu pai, Elias, é austero e vive a repreendê-lo, uma tentativa frustrada de levá-lo para a sua realidade. Com os sonhos no bolso o jovem Walter se lança à guerra aos 17 anos, como uma fuga daquilo que ele tinha medo, as responsabilidade guiadas pelo pai. Como não consegue se alistar (devido a idade), consegue uma vaga como motorista de ambulância. Ao voltar para casa, se vê sem emprego, sem perspectiva e com receio de voltar a viver com os pais.

Encontra no irmão, Roy, o suporte que precisa para buscar a sua própria rota de vida. Depois de várias tentativas, consegue um emprego como arte finalista na Pesman Art Studio e lá se encontra com o que viria a ser um de seus melhores amigo e parceiro, Ub Iwerks. Juntos criam a Newman Laugh-o-grams, uma pequena empresa de animações. Porém, como o próprio Walter descreve, o mercado já estava saturado antes mesmo de sua entrada, assim, encontrando diversas dificuldades para angariar financiadores e apoiadores, além de uma distribuidora que lhe oferecesse subsídios para conseguir uma margem de lucro mínima para manter a empresa.

Nas idas e vindas da história, Walter entra em falência, tanto da empresa, quanto emocionalmente. Se vê nas ruas a procura de comida e imerso em sua própria arrogância por não querer acreditar na frustração que poderia causar em seus pais. Roy havia se mudado para Los Angeles, devido a precariedade de sua saúde e como aposentado de guerra, recebia uma pensão do governo. E foi nesse cenário que Walter se viu embarcar para o outro lado do país, uma jornada que poderia transformar sua vida, mais uma vez.

Com o auxílio de Roy e de sua tia Charlote, Walter, agora na casa dos 30 anos, se lança em uma nova empreitada: uma nova empresa Disney. Precisando de uma equipe, Walter solicita a antiga equipe da Laugh-o-Grams que venham trabalhar em Hollywood. Com pouco dinheiro, Roy sugere que se contratem mulheres para a função de coloristas e, assim, a jovem Lillian Bounds se junta a equipe e se aproxima do coração do jovem Disney.

A reviravolta do filme é como Walter é passado para trás por Charles Mintz e George Winkler, dois mandachuvas do mercado de animações à época. Deles, perdeu o principal personagem que sua empresa, através da criatividade de Ub, criou, o coelho Oswaldo, além dos direitos autorais de Alice, filme que misturava live action e cartoons, um grande salto para a época. Se vendo, mais uma vez, num turbilhão financeiro, Walter pede ao amigo que crie outro personagem, mesmo não tendo dinheiro para executar o plano.

Ub apresenta para a equipe os rascunhos de um rato animado, que Walter chamou de Mortimer. Contudo, Lillian sugere que o personagem mude de nome, para que soe mais amigável. Diversas possibilidades foram coladas à mesa até que a própria Lillian finaliza com o nome Mickey que arrebata o público e promete ser um grande rival para as antigas produções do estúdio, agora de posse de Mintz, levando o nome Disney para outro patamar.

Salvando o Sr. Banks

Antes mesmo do início das gravações de Walt nos Bastidores de Mary Poppins, o elenco já chamava a atenção para esta outra cinebiografia de Walt Disney. Estrelado (literalmente) por Emma Thompson, Tom Hanks e Colin Farrell, o filme retrata as negociações acerca da produção de um dos maiores clássicos com a assinatura Disney de todos os tempos: Mary Poppins. A metalinguagem começa com a preparação do roteiro deste live action criado em 1964, que viria a misturar atores em cenários de desenhos, algo só antes pensado por Walter na indústria cinematográfica.

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Voltando ao filme presente, o que torna a obra peculiar são as incursões de flashbacks da Sra. Pamela L. Travers. Sua personagem sofre idas e vindas com floreios do passado, fundamentais para se entender sua dificuldade em compartilhar os direitos autorais de sua obra mais que querida com uma personalidade megalomaníaca como o americano Walter Disney. Como ela própria diz em diversos momentos do filme, Mary Poppins não é apenas uma personagem de um livro infantil que ela criou: é parte de sua vida. É como uma pessoa da família que ela não vê há muito tempo, mas que está sempre disponível para uma xícara de chá.

Todo o cenário hollywoodiano não agrada a Sra Travers. Ao contrário disso, lhe causa repulsa e descontentamento. A única razão para que ela deixasse sua casa em Londres e partisse para a América do Norte é puramente financeira. Mas, mesmo assim, para ela é muito difícil abrir mão de toda a construção de imaginário que ela realizou com Miss Poppins e deixá-la a encargo de um estúdio que poderia tornar sua melhor pessoa em algo que ela desprezasse.

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O mundo colorido proposto por Disney com suas pelúcias, cadernos, canetinhas e mais um milhão de merchandising que caminham ao lado dele não é nada parecido com o universo surrado e empoeirado das lembranças de Pamela. Seu pai, a principal fonte de imaginação a que ela se entregou inteiramente em sua infância, propiciou a ela um legado de criação muito além da pessoa que ela se tornou. Entender como cada uma das passagens foi realizada, nos permite visualizar melhor as escolhas as quais a Sra Travers teve de tomar para endurecer com relação a sua realidade e resguardar sua criatividade para seus livros.

O ponto de ruptura da trama está nos pequenos compartilhamentos de emoções que as pessoas ao nosso redor podem promover para provocar mudanças em nossa trajetória. Do que se trata o perdão se não nos salvar de nossa culpa por não acreditar nos valores que habitam nossa história de vida.  O contador de histórias tem como papel reestruturar a imaginação e, a partir dela, tecer direções para que as pessoas sigam a partir de suas escolhas.

Visitar, em nossas memórias, um ícone sem o ter conhecido plenamente ou ainda o conhecido em partes é criar representações dele. Ao remexer em nossa arca de memórias é impossível lembrar em detalhes tudo o que aconteceu. Ao contar algo do passado, recriamos e reconectamos os laços com o eu de agora. O eu de ontem são apenas fragmentos desconexos. Então, é possível que ao recontar, criamos uma narrativa romanceada dos acontecimentos, imprimindo ações que não ocorreram. Seria isso falso ou verdadeiro?

A realidade é algo construído (constantemente) no paralelo sobre o verdadeiro e o falso. Essa dicotomia é alterada de acordo com o ponto de vista (que funciona como um prisma) a alterar a forma pela ótica, nos proporcionando compreender aspectos de cada lado, interferindo em nosso contar e escolhendo o que é importante relatar desta história.

Nossa busca pelo romance não é uma fuga da realidade e sim apropriação para dar um sentido para tudo, mas principalmente para o que vivemos no agora.  Nossa mente está a todo o instante recriando e reinterpretando a realidade. Para tanto, nos valemos da narrativa para contar/reportar algo. O romance torna a narrativa mais palatável. Usá-los é o que nos torna verdadeiros.

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Julie Andrews, Walt Disney e Mrs. Travers na premiere de Mary Poppins

No início do filme a Sra Travers queria salvar seu patrimônio de hoje, mas acabou resgatando muito mais que o pagamento de dívidas do presente. Ela conseguiu, ao final de tudo, salvar o seu bem mais precioso: a memória de sua família. Walter se comportou como o intermediário desta ação, guiando Pamela por um novo mundo de oportunidades para sua história, preservando o imaginário e unindo seus dois mundos.

YK Teles
Jornalista e aprendiz.
https://becodaspalavras.com/

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