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A influência da norma nas traduções bíblicas

Desde que a Bíblia foi traduzida na íntegra em português pela primeira vez, no século 17, houve uma série de revisões dessa tradução, adaptando-a para uma linguagem cada vez mais popular, ou seja, mais acessível ao povo. Este artigo visa à análise das principais versões em português da Bíblia, mostrando, com exemplos, a influência da norma, isto é, como a gramática normativa é respeitada nessas traduções e que variantes do dialeto social popular as versões aceitaram utilizar.

A Bíblia é considerada o livro mais vendido e lido no mundo, podendo ser encontrada em qualquer boa livraria. Mas, nem sempre foi assim. Até o início do século 16, era proibido ler a Bíblia. Ela era lida apenas na igreja, pelo sacerdote (padre, bispo etc.), em latim. A maior parte da população era pobre e analfabeta. Ir à missa para eles não valia muita coisa.

Com a Reforma Protestante, liderada por Martinho Lutero, João Calvino e outros, no século 16, foi iniciado o processo de universalização da Bíblia. A partir daí, o acesso à Palavra de Deus tornou-se bem mais prático e livre. Hoje, na maior parte do mundo, a leitura não só é permitida como incentivada.

Bíblias-diversas

A Bíblia já foi traduzida para centenas de línguas. Em português, a tradução mais importante e usada é a do português João Ferreira de Almeida. Na verdade, ele não traduziu toda a Bíblia. Primeiro, concluiu a tradução do Novo Testamento do grego para o português em 1670. Depois, passou a traduzir o Antigo Testamento do hebraico e aramaico para o português. Porém, em 1691, aos 63 anos, o pastor faleceu, deixando sua obra inacabada (traduziu até Ezequiel 41:21). Em 1748, o pastor Jacobus Op den Akker concluiu a tradução e, em 1753 a Bíblia foi impressa na íntegra em português.

A versão mais usada atualmente da tradução de Almeida é a Edição Revista e Corrigida (ARC), de 1954. Apesar de sua popularidade, a linguagem da tradução corrigida é cheia de arcaísmos que tornam os textos bíblicos incompreensíveis aos falantes do dialeto social popular.

Essa linguagem arcaica da tradução de Almeida se deve à época em que ele vivia. Nas revisões feitas ao longo dos anos, a ortografia foi atualizada, mas a linguagem não. Por isso, essa tradução foge totalmente da realidade da maioria dos cristãos de hoje. Vale dizer que, na época, só o fato de traduzir a Bíblia já era considerado uma ajuda à população. Muitos portugueses só passaram a lê-la depois de traduzida, pois a maioria dos alfabetizados conhecia apenas sua própria língua.

A Nova Versão Internacional (NVI) é uma tradução feita diretamente do original para o português por uma comissão de tradução da Sociedade Bíblica Internacional (SBI). No prefácio de sua quarta edição, de 2001, está escrito:

(…) os versículos são organizados em períodos menores, pontuados conforme as exigências da língua portuguesa e apresentando uma fluência de leitura da qual a Bíblia é digna. (…) O nível de linguagem a NVI prima ao mesmo tempo pela dignidade e pela compreensão. (…) É muito importante destacar que o nível de formalidade da linguagem foi definido de acordo com o contexto. Para exemplificar: o tratamento de um súdito para com o seu rei deve necessariamente ser diferente, no tom cerimonioso, daquele utilizado por servos, conversando informalmente entre si.

Ao contrário da tradução de Almeida, sua linguagem aproxima-se mais da popular. Ela emprega constantemente o você, tratamento que não é encontrado na versão corrigida, que, nesses casos, utiliza apenas a segunda pessoa do singular. A organização das frases também é feita de forma a facilitar o entendimento do texto pela população. Mas, ainda assim, não foi escrita em obediência à norma popular, apesar de, mesmo quem domina apenas esse dialeto, consegue compreender a tradução.

A Bíblia na Linguagem de Hoje (BLH), traduzida pela SBB (Sociedade Bíblica do Brasil), tem como principal objetivo aproximar-se do público leitor que, em sua maioria, são falantes do dialeto popular. Lemos, na introdução da primeira edição (1988):

Esta nova tradução em português se caracteriza pelo seguinte: (…) O sentido do texto é dado em palavras e formas do português falado hoje no Brasil. Foi feito todo o esforço para que a linguagem fosse simples, clara, natural e sem ambiguidades.(…) se uma figura de linguagem corre o risco de não ser entendida pelo leitor, ela é substituída por outra ou então o seu sentido é dado em linguagem direta.

Além das versões citadas, têm surgido muitas outras, sendo a maioria influenciada pela tradução de Almeida: a Bíblia Teen que, apesar de destinada aos adolescentes, possui a tradução Revista e Corrigida. Porém, ela é cheia de devocionais, histórias com fundo moral e curiosidades bíblicas. Também foi publicado O Livro de Deus, que é a Bíblia romanceada. Existe também a Bíblia da Garotada, ilustrada, com uma linguagem muito simples e fácil, própria para as crianças entenderem. Há também a Bíblia da Mulher, a Bíblia em Braile e muitas outras versões.

Apesar de todo esforço dos tradutores e das editoras em adequar a linguagem bíblica à população, existem certas regras da gramática de que nenhuma delas abre mão. Todas as versões são escritas de acordo com a norma culta da língua.

Como exemplos da obediência à norma nessas versões, temos:

  • O uso do tempo verbal no futuro do presente, que hoje nem se usa mais, sendo mais comum o emprego de locuções verbais ir + verbo. Ex: Isaías 2.2 nas três versões: “Nos últimos dias o monte do templo do Senhor será estabelecido como o principal; será elevado acima das colinas, e todas as nações correrão para ele” (NVI). “No futuro o monte do templo do Deus Eterno será o mais alto de todos e ficará acima de todos os montes. Os povos de todas as nações irão correndo para lá” (BLH). “E acontecerá nos últimos dias que se firmará o monte da casa do Senhor no cume dos montes e se exalçará por cima dos outeiros: e correrão a ele todas as nações” (ARC).
  • A próclise raramente é usada, sendo mais comum a utilização do verbo + pronome (levar ela, em vez de levá-la). Usaremos o exemplo de Romanos 1.11: “Porque desejo ver-vos, para vos comunicar algum dom espiritual, a fim de que sejais confortados” (ARC). “Anseio vê-los, a fim de compartilhar com vocês algum dom espiritual, para fortalecê-los” (NVI). “Pois desejo muito vê-los, a fim de repartir bênçãos espirituais com vocês para fortalecê-los” (BLH).
  • Uso de regências, sendo que a maioria das pessoas se esquece de usá-la ou não a usa. É comum ouvir-se: assistir o jogo (em vez de assistir ao jogo). Todas as versões seguem corretamente a regência dos verbos: Em Romanos 12.11: “Não sejais vagarosos no cuidado; sede fervorosos no espírito, servindo ao Senhor” (ARC). “Nunca lhes falte o zelo, sejam fervorosos no espírito, sirvam ao Senhor” (NVI). “Trabalhem bastante e não sejam preguiçosos. Sirvam ao Senhor com o coração cheio de entusiasmo” (BLH).
  • O emprego correto da concordância verbal e nominal. Nenhuma das versões utiliza a norma popular, que usa o plural apenas no artigo (as mulher falou). Em João 1.12 temos um exemplo. “Contudo, aos que o receberam, aos que creram em seu nome, deu-lhes o direito de se tornarem filhos de Deus” (NVI). “Alguns, porém, o receberam e creram nele, e ele lhes deu o direito de se tornarem filhos de Deus” (BLH). “Mas, a todos quantos o receberam, deu-lhes o poder de serem feitos filhos de Deus, aos que creem no seu nome” (ARC).

Falamos de características da norma culta, agora falaremos das principais características da norma popular que são aplicadas nas versões bíblicas mais modernas. Não encontraremos exemplos de aplicação da norma popular na ARC. Os exemplos serão dados comparando a linguagem da ARC com a NVI e a BLH:

  • Em Atos 21.19, está escrito, de acordo com a ARC: “E, havendo-os saudado, contou-lhes por miúdo o que por seu ministério Deus fizera entre os gentios”. A NVI e a BLH substituem o pretérito mais-que-perfeito pelas locuções verbais, respectivamente: haver + verbo e ter + verbo. Na NVI: “Paulo os saudou e relatou minuciosamente o que Deus havia feito entre os gentios por meio do seu ministério”. Na BLH: “Então Paulo os cumprimentou e deu um relatório completo de tudo o que Deus tinha feito por meio dele entre os não-judeus”.
  • É comum encontrarmos expressões como daí e , além do então, nas traduções mais modernas. Na ARC não encontramos esses tipos de bordões. Exemplo: “Assim eu disse no meu coração: Como acontece ao tolo, assim me sucederá a mim; por que então busquei eu mais a sabedoria? Então disse no meu coração que também isto era vaidade” (Eclesiastes 2.15). O mesmo texto é dito assim, na NVI: “Aí fiquei pensando: O que acontece ao tolo também me acontecerá. Que proveito eu tive em ser sábio? Então eu disse a mim mesmo: Isso não faz o menor sentido!”. Na BLH: “Aí eu pensei assim: ’O que acontece com os tolos vai acontecer comigo também. Então, o que é que eu ganhei sendo tão sábio?’ E respondi: ‘Não ganhei nada!’”. Ainda não é tão comum encontrar o na NVI, sendo o então mais usado. Já na BLH encontramos diversos versículos contendo tanto o como o daí. Por esse e outros exemplos, a BLH é considerada ainda mais popular que a NVI: Em Gênesis 7.16 (BLH) diz: “(…) Aí o Deus Eterno fechou a porta da barca”. Na NVI: “(…) Então o Senhor fechou a porta”.
  • Nos textos da ARC é utilizada a segunda pessoa do singular e a do plural. Na NVI e na BLH temos predominância do uso do você. Exemplo (ARC): “Porque tiveste cinco maridos, e o que agora tens não é teu marido; isto disseste com verdade” (João 4.18). “Pois já teve cinco, e este que você tem agora não é de fato seu marido. Sim, você falou a verdade” (BLH). “O fato é que você já teve cinco; e o homem com quem você vive agora não é seu marido. O que você acabou de dizer é verdade” (NVI).
  • Outra característica da norma culta é o vocabulário rebuscado. Na ARC, lemos em Romanos 16.16: “Saudai-vos uns aos outros com santo ósculo. As igrejas de Cristo vos saúdam”. Se perguntássemos às pessoas pelas ruas o que significa a palavra ósculo, provavelmente não encontraríamos alguém que soubesse, a não ser algum falante culto, dono de um rico idioleto (Preti,1977:14), ou algum cristão que leia bastante a Bíblia e já tenha se informado sobre o significado da palavra. Por isso, as novas versões substituíram aquela palavra por seu sinônimo: beijo. O mesmo versículo transcrito acima é traduzido dessas formas, pela NVI e pela BLH, respectivamente: “Saúdem uns aos outros com beijo santo. Todas as igrejas de Cristo enviam-lhes saudações” e “Cumprimentem uns aos outros com um beijo de irmão. Todas as igrejas de Cristo mandam saudações”.
  • Além do uso de palavras desconhecidas para a maioria, a ARC também utiliza palavras ou expressões que, apesar de conhecidas, não possuem no texto o sentido que se imagina. Temos vários exemplos: vaidade (inutilidade ou ilusão), caridade (amor), aflição de espírito (correr atrás do vento) etc. Porém, enfocaremos no exemplo da palavra vaidade. Nessa versão, Eclesiastes 2.17 diz: “Por isso odiei esta vida, porque a obra que se faz debaixo do sol me era penosa; sim, tudo é vaidade e aflição de espírito”. Na BLH e na NVI, o mesmo verso é traduzido assim, respectivamente: “Por isso a vida começou a não valer nada para mim: ela só me havia trazido aborrecimentos. Tudo havia sido ilusão: eu apenas havia corrido atrás do vento”. “Por isso desprezei a vida, pois o trabalho que se faz debaixo do sol pareceu-me muito pesado. Tudo era inútil, era correr atrás do vento”.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:

www.wikipedia.com.br– Procura por João Ferreira de Almeida

Enciclopédia Microsoft Encarta – Procura por Reforma

LEITE, Marli Quadros. Variação linguística: dialetos, registros e norma linguística. In: SILVA, Luiz Antônio da (org.).A língua que falamos:português: história, variação e discurso . São Paulo: Globo, 2005. p. 199-200.

PRETI, Dino. Sociolinguística: os níveis de fala. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1977. p. 01-37.

Bíblia Sagrada: nova versão internacional. São Paulo: Sociedade Bíblica Internacional, 2001. 4ª ed.

Bíblia Sagrada: tradução na linguagem de hoje. São Paulo: Sociedade Bíblica do Brasil, 1988.

Bíblia Sagrada: edição revista e corrigida. São Paulo: Geográfica, 1999.

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