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A fábula da mulher e seu tempo

Uma das principais atrações do Festival de Teatro de Curitiba, Gaby Amarantos abre turnê do espetáculo Eu Sou no Teatro Guaíra

Fotos: Annelize Tozetto/FestCuritiba

Ser mulher em uma sociedade de exclusão é uma reconstrução constante. Apesar de sermos maioria, a representatividade no pensamento filosófico universal ainda carece de vozes. O lugar de fala é, muitas vezes, cerceado pela lógica masculina que exclui e condiciona a mulher à condição de subalterna, uma âncora do homem. As conquistas, relevantes para a construção social, como conceitos de equidade, evolução nos direitos civis e representatividade de minorias são diminuídas a ponto de se tornarem supérfluas na linha do tempo de nossa sociedade. Uma história de vencidos.

Neste ponto, sentir-se mulher é um ato de resistência. Em todo o momento estigmas reforçam o lugar submisso do gênero. Se a mulher se torna mãe é condicionada a se voltar apenas a criação de seus filhos. Se filha, a mulher tem que se dar o respeito e se resguardar para não ser taxada de puta. Se pensadora, deve referenciar o modelo masculino, já que eles “vieram primeiro”. Ser mulher não é fácil. É um ir e vir de rótulos que impedem que outras facetas do conhecimento sejam exploradas.

Ao mesmo tempo que temos tantas mulheres que lutaram para mudar o status quo, não conseguimos escutar suas vozes. São difusas, pois não há unicidade ao ouvi-las. Estamos tão impregnados de conceitos retrógrados que, quando uma nova onda de oportunidades de alçar nossas vozes ao máximo de pessoas possíveis chega, nos diminuímos, taxando a nós mesmas de incapazes. Dizemos por aí em caixas de comentários na internet que a culpa é dela; que não deveria ter usado tal roupa; não deveria ter se comportado daquele modo; ela pediu para ser assim. Quebrar esse ciclo é necessário, mas é um algo diário, constante, que depende de quebra de paradigmas. Sair da tal zona de conforto.

Neste cenário, Gaby Amarantos é, cada vez mais, meu referencial de mulher, nortista e artista multifacetada. Como ícone de resistência, Gaby é nossa melhor voz. Traz ao centro dilemas que enfrentamos em nossa vida. É possível gozar? Se chamar de piranha? Ser voraz? Completamente fora dos padrões cinzas das grandes metrópoles da parte financeiramente mais abastada do país, Gaby representa as cores da nossa miscigenação.

Seu corpo, moda, estilo e voz mudam o sentido das coisas. A cor de jambo em sua face ganha cada vez mais capas de revista, ensaios sensuais com seu corpo emponderado, a moda e estilo que está impressa em grandes lojas de departamento e produtos de beleza. Gaby sou eu resistindo todos os dias para não ser estigmatizada de gorda, feia e pobre neste BR gourmetizado.

Ao refletir sobre sua carreira, impossível não esbarrar em outras cicatrizes que nossa sociedade suplanta para diminuir seu papel forte dentro do cenário da música nacional. Começando pela vertente que a alçou ao estrelato: o tecnobrega. Se vem do povo e para o povo, o Brega é SIM música popular brasileira, mas para um país de vencidos a história regional do norte é ignorada desde tempos de Fafá de Belém.

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Fotos: Annelize Tozetto/FestCuritiba

A fria Curitiba do dia cinco de abril foi tomada de espanto e encantamento por Gaby. Para o Festival de Teatro de Curitiba, a artista apresentou o espetáculo Eu Sou, um símbolo de crescimento e renovação da artista no palco. Sob os holofotes do Teatro Guaíra e produção impecável, Gaby nos proporcionou uma imersão à cultura brasileira e regional. No palco apenas sua voz guiada por violão e percussão foram necessárias para promover emoções das mais diversas. O cenário faz parte da linguagem do espetáculo, com tecidos transparentes que foram usados como telões. Nele se projetavam símbolos de diferentes regiões, como o uso de estampas de chita. Delas, uma explosão de mandalas repletas de cores e formas se mesclavam a fotografias de infância, juventude, vida adulta e plena.

Gaby flutuava entre os tecidos entre uma lembrança e outra, trazendo ao centro tópicos de luta como o #MexeuComUmaMexeuComTodas e #ChegaDeAssedio e muitos gritos feministas como “deixe ela ser quem ela quiser”. Todas as misturas que fizeram (e fazem) parte da vida da artista estavam ali representadas: o samba, o carimbó, o brega e a lambada. Piranha de Alípio Martins, Jamburana de Dona Odete e Como Nossos Pais de Belchior – a última soou apenas em voz, sem instrumentos –, nos relembram que o ritmo é veículo do espírito e, este, deve se libertar no frenesi do balanço dos corpos. Formas e ritmos que são parte integrante da miscelânea do ser brasileiro, nossa Música Popular Brasileira.

Gaby nos lembra que somos muito mais que a casca que nos carrega. De olhos fechados foi possível sentir a presença por meio de sua voz, que guia sensações. Entre uma canção e outra, o público exalta a emoção de estar na presença de alguém que, como eles, resiste. Muitos foram os “Gostosa!” e “Maravilhosa!” gritados a plenos pulmões. Gaby, como qualquer pessoa que recebe um elogio sincero, agradece de forma acolhedora e simpática. E eu terminei minha noite acreditando muito mais que a arte é o veículo de transformação e emponderamento de uma sociedade.

“Eu Sou – Gaby Amarantos”

Ficha técnica completa

Diretor: Gareth Jones.
Violão: Danilo Goto.
Percussão: Mario Negrão.

YK Teles
Jornalista e aprendiz.
https://becodaspalavras.com/

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