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Crainquebille, de Anatole France – Mal entendido e questões de linguagem

mediaCrainquebille aferrava-se à sua decisão, obedecendo a uma força interior. De qualquer modo, ser-lhe-ia impossível agora avançar ou recuar. A roda de seu carrinho engatara-se desastradamente à de de uma carroça de leiteiro.

E ele clamava, arrancando os cabelos sob o gorro:

– Mas se eu lhe digo que estou esperando meu dinheiro! Desgraça de azar! Raio de miséria! Demônios do inferno!

A essas manifestações, que contudo exprimiam menos revolta que desespero, o agente 64 julgou-se insultado. E como, para ele, todo o insulto revestia necessariamente a forma tradicional, rotineira, consagrada, ritual e por assim dizer litúrgica de ‘Morte aos bigorrilhas!’, foi sob essa forma que ele recolheu e condensou em seus ouvidos as palavras do insurgente.

– Ah! O senhor disse ‘morte aos bigorrilhas!” Muito bem. Me acompanhe.

No extremo de pasmo e consternação em que se encontrava, Crainquebille fitou seus olhos descorados pelo sol no agente 64 e, na sua voz quebrada, que lhe saía ora de sobre a cabeça, ora debaixo dos calcanhares, exclamou, cruzando os braços sobre o blusão azul:

– Eu disse ‘morte aos bigorrilhas’? Eu?… Ora!

O trecho transcrito acima faz parte do clássico conto francês Crainquebille, de Anatole France. A história já foi adaptada para o cinema ma década de 20, com muito sucesso.

O texto narra a história de Crainquebille, um senhor de idade que andava pelas ruas de Paris vendendo legumes e verduras num carrinho. Num momento em que ele precisou esperar que uma freguesa lhe pagasse o que comprara, acabou por obstruir a passagem e foi advertido por um policial (o agente 64) para que saísse do caminho. Crainquebille não obedeceu porque queria receber seu dinheiro e, ao ver que o agente 64 iria lhe aplicar uma multa, começou a praguejar. O policial entendeu os resmungos como uma ofensa (“morte aos bigorrilhas”) e o levou preso. Apesar de um homem respeitado (Doutor Mattieu) testemunhar a seu favor no julgamento, Crainquebille foi condenado a quinze dias de reclusão. Quando retornou à sua rotina diária, percebeu que as pessoas o evitavam e o hostilizavam. Revoltado com isso, mas sem saber se comportar perante uma situação até então desconhecida para ele, o protagonista tornou-se um velho ranzinza, gastando em bebida o pouco dinheiro que recebia.

O mal entendido não foi originado no praguejo. A confusão na comunicação surgiu quando houve desentendimento na vontade de ambos. Crainquebille não entendeu que aquela era uma ordem a ser cumprida imediatamente. O agente 64, por sua vez, não compreendeu que Crainquebille precisava receber o seu dinheiro e teria prejuízo se saísse dali. Fazia parte do trabalho do policial ser obedecido. Se isso não acontecesse, ele sairia desautorizado da situação. Já o protagonista queria receber o dinheiro, que era seu de direito, já que a freguesa havia retirado e levado a mercadoria. Esse conflito entre os dois fez com que o agente 64 ficasse à espera de uma ofensa que, em seus ouvidos, vinha sempre representada em sua mente pela frase “morte aos bigorrilhas”. Com isso, bastou que Crainquebille começasse a praguejar para que o agente 64 ouvisse e organizasse as informações da forma como costumava interpretar os insultos.

Esse mal entendido causado tem muito a ver com a questão da inteligência de senso comum e a do modo sistemático, expostas por Bernard Lonergan. Segundo ele, a inteligência sistemática é aquela em que o conhecimento fica emoldurado em definições, e está completo, acabado. Já a inteligência de senso comum tem como característica a espontaneidade. Ela não aceita definições gerais e age por analogia que, nesse caso, consiste na assimilação (que absorve resultados de operações bem sucedidas ou não) e no ajuste (faz as modificações necessárias para não cometer o mesmo erro da operação mal sucedida). Assim, na inteligência de senso comum, não há uma definição concreta e objetiva e, sim, um aprendizado que, conforme é usado, pode sofrer modificações de sentido, de acordo com o seu sucesso ou o seu fracasso.

Em vista disso, pode-se entender que o agente 64 estava utilizando um modo sistemático de pensamento, quando deveria utilizar a inteligência de senso comum. Sua definição de insulto estava limitada à frase “morte aos bigorrilhas” e tudo que lhe parecesse ofensa era recebido dessa forma. A prova disso é que, durante o julgamento, ao ser interrogado pelo presidente quanto ao que disse o Dr. Mattieu (defendeu Crainquebille ao dizer que este não ofendera o policial), o agente 64 diz que o médico também o ofendera. Segundo ele, esta ofensa também foi um grito: “morte aos bigorrilhas”.

Com Crainquebille o problema foi outro. Apesar de o protagonista também utilizar o pensamento sistemático em situações em que se deveria usar o de senso comum, como será visto adiante, nesse caso o que o prejudicou foi sua dificuldade com relação à linguagem. O texto diz que ele não era bom com as palavras e isso o impediu de esclarecer o mal entendido com o policial. O problema não era apenas de vocabulário, muito pobre e vago, mas também de construções sintáticas. Ao perceber essa dificuldade, é possível vir à mente Fabiano, herói de Vidas Secas, de Graciliano Ramos. De fato, a relação entre ambos é bem possível no que diz respeito à linguagem. No conto lê-se:

“Crainquebille tentou expor-lhe o acontecido, o que não lhe era fácil, pois não tinha o hábito da palavra”.

“Esse interrogatório teria produzido mais luz se o acusado tivesse respondido às perguntas que lhe eram feitas. Mas Crainquebille não era afeito às discussões, e, num tal ambiente, o respeito e o espanto trancavam-lhe a garganta”.

Já em Vidas Secas, lê-se:

“Às vezes utilizava nas relações com as pessoas a mesma língua com que se dirigia aos brutos – exclamações, onomatopéias. Na verdade falava pouco. Admirava as palavras compridas e difíceis da gente da cidade, tentava reproduzir algumas, em vão, mas sabia que elas eram inúteis e talvez perigosas”.

A posição social de Crainquebille e Fabiano pode ser a causa da dificuldade que ambos têm com as palavras. Com isso, pode-se comparar a diferença social de diversas personagens do conto e como ela influencia a linguagem de cada um. Os advogados e o presidente do tribunal sabiam utilizar a linguagem, tanto que o advogado de defesa quase convenceu o presidente de que seu cliente era inocente. Se não conseguiu, não foi por problema de retórica, mas novamente o social: o texto diz que, naquela época, os policiais eram muito bem vistos e respeitados. O presidente não poderia desacreditar um protetor da lei e da ordem. Por isso, mesmo com o testemunho do doutor Mattieu a favor de Crainquebille, o agente 64 acabou vencendo o processo.

A mesma falta de familiaridade com a linguagem é a causa de Crainquebille não conseguir se defender das injustas acusações. O herói aceitava o que acontecia sem se revoltar. Ele não tinha idéia da injustiça que sofria, chegando a achar correto que o condenassem, apesar de se saber inocente. Isso é incoerente, mas Crainquebille não conseguia perceber isso.  Chegou a pensar inclusive na possibilidade de realmente haver gritado “morte aos bigorrilhas!”, de alguma maneira misteriosa, mas de que não conseguia se recordar. Contudo, apesar de ter pensado até no sobrenatural, não pensou que o presidente pudesse estar errado. Ele tinha consciência de sua inferioridade em relação ao agente 64 e ao presidente do tribunal. Por isso, não podia passar em sua cabeça que aquelas pessoas tão importantes estivessem erradas. Era normal que tudo o que elas dissessem fosse considerado, ele não era ninguém para se queixar. Com o policial, ocorria quase o contrário: como autoridade, a razão deve ser dele e, se não é obedecido, sente-se ofendido (como já vimos, uma definição sistemática de ofensa) e toma as providências necessárias para que a “justiça” seja feita.

Assim, é possível interpretar como sistemática a maneira com que Crainquebille enxerga o mundo e o espírito jurídico que o rege. A sociedade é dividida em camadas, sendo natural que algumas tenham mais privilégios que outras. Não há possibilidade de ascensão e não há nada de errado nisso. Sua definição de justiça estava completa, não aceitava modificações nem adaptações.

Ao que parece, Crainquebille utilizava o modo de inteligência sistemático para muitas outras definições da vida. Quando ele elogia a limpeza e higiene da cela onde esteve, não podemos saber se o ambiente era realmente limpo ou se o protagonista o considerou assim porque sua ideia de limpeza era diferente da que geralmente se tem. O que se pode saber era que o ambiente em que costumava descansar ou dormir não era de muito conforto e provavelmente não havia muita higiene. Comparando seu ambiente de descanso e a cela para onde o levaram, Crainquebille elogiou o espaço, chegando a dizer que era possível comer no chão.

Ao sair da cadeia, o protagonista vê-se evitado pelos que antes eram seus fregueses. A partir disso, ele enxerga como realmente era injusta a sociedade em que vivia. Por não saber se comportar perante esta situação, o velho Crainquebille tornou-se injusto (exatamente a característica que notara com tristeza no meio parisiense), tratando mal as pessoas, mesmo aquelas que não mudaram de atitide em relação a ele. O conto diz:

“Não há como negar: ele tornou-se inconveniente, ranzinza, rixento, deslinguado. É que, achando a sociedade imperfeita, não tinha ele a aptidão de um professor da Escola de Ciências Morais e Políticas para exprimir o que pensava sobre os vícios do sistema e as reformas necessárias, e as idéias não se lhe desenrolavam na cabeça com ordem e medida.”

Crainquebille não possuía experiências de vida para lidar com a imperfeição que recém descobrira na sociedade. Esse problema parece ser de senso comum. Ele percebeu que sua definição sistemática para justiça estava equivocada no meio onde se encontrava. Lonergan afirma que “o homem de senso comum está preparado para falar e agir apropriadamente em todas as ocasiões normais em seu meio ambiente”. Um homem de senso comum sabe exprimir sua forma de pensar de acordo com a situação a ser encarada. Ele deve adaptar o seu próprio senso comum, para não parecer um estranho ou um louco, como aconteceu com Crainquebille.

Ao final do conto, pode-se pensar numa distante evolução no senso comum de Crainquebille. Ao se ver na rua, passando frio e fome, lembrou-se da cadeia, onde tinha teto, comida e cobertor. Percebeu então que estar lá era melhor do que permanecer na situação terrível em que se encontrava. Daí, Crainquebille lembrou-se do motivo por que foi preso: procurou um guarda e lhe gritou: “morte aos bigorrilhas!”, pensando que este se sentiria ofendido e o prenderia, da mesma forma como fez o agente 64. Porém, o policial não se importou, considerando-o um velho louco. Com esse fracasso, o protagonista percebe que sua tentativa de modificação falhou. Essa evolução de seu senso comum é vista como bem distante, já que ainda essa modificação ainda era equivocada e não se encaixava às situações normais.

Também é possível ver esta tentativa como sistemática, se for levado em consideração que Crainquebille estava utilizando uma espécie de fórmula lógica: se “morte aos bigorrilhas” ofendia o agente 64, a mesma expressão deveria ofender quaisquer outros agentes. Essa ideia também se fechou numa definição paradigmática. Se o seu aprendizado tivesse sido de senso comum, Crainquebille teria pensado em outras formas de desacato ao policial e muito provavelmente teria atingido seu objetivo, que era o de voltar à cadeia.

O conto apresenta uma crítica severa à sociedade parisiense da época, em que pessoas como o protagonista eram molestadas por causa da linguagem e indignas de serem consideradas cidadãs. Também é possível concluir que o problema de linguagem desses indivíduos era devido, entre outras causas, à confusão na utilização da inteligência sistemática e de senso comum.

Referências Bibliográficas

FRANCE, Anatole. Crainquebille (tradução de Celina Portocarrero). In: Costa, Flávio M. (org.). Os 100 melhores contos de crime e mistério da literatura universal. São Paulo: Ediouro, 2002.

LONERGAN, Bernard. Horizontes que se unem: o sistema, o senso comum, a erudição.

RAMOS, Graciliano. Vidas secas. São Paulo: Record, 2003.

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